Em que pese todo avanço tecnológico, as redes sociais, na distribuição do conteúdo de forma veloz construiu verdadeiros monstros, de acordo com a vontade de quem divulga e compartilha a notícia, que muitas das vezes vem com seu conteúdo editado para dirigir o intérprete para o lado que lhe convém, e assim reproduzimos e replicamos maldades sem fim.
Por isso tratamos aqui sobre as três ciências e a sua relação na influência do intérprete no conteúdo das Fake News, como bem destaca Lucia Santaella na obra Temas e Dilemas do Pós-Digital: “Como se dá a relação entre as três ciências, como elas se interconectam? A ação humana é ação raciocinada, que, por sua vez, é deliberada e controlada. Mas toda ação deliberada e controlada é guiada por fins, objetivos, os quais, por seu lado, devem ser escolhidos. Essa escolha, se for fruto da razão, também deve ser deliberada e controlada, o que, ao fim e ao cabo, requer o reconhecimento de algo admirável em si mesmo para ser almejado. A lógica como o estudo do raciocínio correto é a ciência dos meios para se agir razoavelmente. A ética ajuda e guia a lógica através da análise dos fins aos quais esses meios devem ser dirigidos. A estética guia a ética ao definir qual é a natureza de um fim em si mesmo que seja admirável e desejável em quaisquer circunstâncias, independentemente de qualquer outra consideração de qualquer espécie que seja. A ética e a lógica são especificações da estética. A ética propõe quais propósitos devemos razoavelmente escolher em várias circunstâncias, enquanto a lógica propõe quais meios estão disponíveis para perseguir esses fins.”
Logo, a lógica, a ética e a estética sempre estão presentes na propagação de Fake News, seja por quem produz o conteúdo, ou por quem recebe e compartilha o conteúdo, fazendo correr pelos quatro cantos a “verdade” (versão) que lhe for mais conveniente.
Diariamente somos bombardeados em nossas redes sociais de notícias que não ficam de pé ao primeiro sopro de verdade, mas que por incrível que pareça ingênuos, desavisados e mal intencionados reproduzem como se verdade fosse. Por óbvio a questão não se esgota na ética, mas avança para a política, uma política nutrida na arte do existir, logo a liberdade sempre caminhará ao lado desses valores, que são sempre guia e desafio ao mesmo tempo.
Por isso convivemos diariamente com o debate da mídia programática, que recentemente tem tido grande destaque na imprensa. De forma destacada as notícias divulgadas sustentam o raciocínio de que a mídia programática financia o crime e incentiva o patrocínio das fake News, logo ela que surgiu para democratizar a publicidade e dar escala, sendo vantajosa para veículos, agências e anunciantes, porém a busca pela neutralidade do embate e a liberdade de expressão, além da recente cobrança de movimentos sociais que discutem a parcialidade das redes sociais, colocam essa neutralidade em desafio permanente.
A liberdade de expressão está assegurada como direito constitucional, porém, sempre um porém, também existe limite para o exercício deste, sendo inadmissível a propagação de certos conteúdos considerados ofensivos ou falsos, podendo acarretar responsabilidades civis e até mesmo configurar crime. O artigo 19 do Decreto nº 592/92 que dispõe sobre o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), anuncia:
“1. ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.
2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.
3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:
a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas”.
O artigo 19, parágrafo 3, prevê a flexibilização da liberdade de expressão diante de outros princípios, não sendo considerado em termos absoluto. No mesmo parágrafo, tem-se a indicação de que as restrições devem estar asseguradas por lei. Assim, o país signatário do PIDCP – o Brasil ratificou-o em 24 de janeiro de 1992 – deve assegurar de forma proporcional e necessária tais restrições.
Uma vez que a ignorância, quase sempre é o terreno fértil para proliferação de calúnias e preconceitos, sejam eles religiosos ou raciais.
Algo que precisa ser refletido é que a internet não é mundo sem lei, um lugar em que pode tudo. Muitos fazem perfis fakes ou propagam notícias e informações sem veracidade e se olvidam que podem responder da mesma forma que respondem pelo mesmo crime cometido no mundo físico. Há uma falsa sensação de que a conduta ilícita cometida no âmbito virtual fica à deriva e que nada vai acontecer. Tal pensamento encoraja muitas pessoas a cometerem os mais diversos crimes virtuais.
Tomemos como exemplo a rede social QAnon e a sua responsabilização por extremismos. Em 2020, um relatório do FBI nos EUA apontou que “muito provavelmente” ideias difundidas pelo movimento QAnon levariam grupos a cometer atos criminosos, mais do que uma mera reunião de família, a imagem era uma prova de que novos líderes com inclinações totalitárias são os escolhidos.
Segundo um levantamento do Estadão, em 2020, ideias do movimento foram propagadas em páginas, grupos e canais de Facebook e YouTube que, juntos, somam cerca de 1,7 milhão de seguidores ou membros. Por meio da ferramenta Crowd Tangle, a pesquisa considerou apenas as publicações em português. São contas que permanecem no ar, apesar das remoções de grupos de adeptos da QAnon anunciadas recentemente pelas plataformas.
A teoria da conspiração Qanon surgiu nos EUA em 2017, quando um usuário com pseudônimo afirmou ter acesso ao nível mais alto de acesso a informações confidenciais dos EUA, todo boato e delírio surgem com essas frases de efeito:
“Veja antes que a Globo apague”
“O Supremo está querendo caçar esse vídeo!”
“O Vídeo que os comunistas não suportam! ”
E assim vai, sempre com a ideia do “veja com exclusividade antes que os “inimigos” do Estado apareçam!”
O Q começou enviando mensagens criptografadas no fórum de mensagens 4Chan, para historiadores e especialistas em extremismo de extrema direita, o Qanon é um fenômeno muito novo e ao mesmo tempo muito antigo, pois a ideia de uma elite sugadora de sangue e sem raízes que abusa e até come crianças é uma reminiscência da propaganda medieval sobre judeus bebendo o sangue de bebês cristãos, na versão do século 21 do “libelo de sangue”.
O Facebook age, constantemente contra grupos e páginas ligadas ao movimento QAnon e que violam as políticas da empresa. Não se trata de censura, mas de controle de conteúdo impróprio fora das políticas da plataforma. Por isso em recente declaração o Face comunicou que: “Esses movimentos evoluem com rapidez, o que exige do facebook um esforço contínuo. Portanto, seguiremos o tema de perto, estudando símbolos e terminologias e avaliando os próximos passos para manter a nossa comunidade segura”, diz a nota
O YouTube por sua vez declarou que desde que atualizou sua política de discurso de ódio, em junho de 2019, removeu “dezenas de milhares” de vídeos relacionados ao QAnon e encerrou “centenas” de canais com conteúdo sobre o tema por violarem diretrizes de comunidade.
A intervenção segue também na ferramenta de busca pois quando os usuários vêm ao YouTube e pesquisam tópicos sujeitos a desinformação, são fornecidos textos adicionais e conteúdo complementar para apurar a veracidade dos fatos.
O Qanon (sigla para “Q Anônimo”) foi adaptado ao Brasil e a cada dia, nessa época de extremos, ganha adeptos entre radicais nacionais. A versão brasileira da teoria da conspiração criada pela extrema direita americana tem sido cultivada em fóruns e alimenta campanhas de fake news.
Com cerca de 572 mil membros ou seguidores, somente o maior grupo de adeptos da Qanon reunia mais de 22 mil integrantes. Páginas identificadas como “oficiais” e dedicadas à publicação de conteúdos agressivos ou falsos também foram encerradas. A Qanon não é banida do Facebook, a rede aceita os conteúdos conspiratórios, desde que não incentivem comportamentos violentos. Nesses fóruns havia compartilhamento de campanhas que inventavam ameaças à vida dos que usam máscaras e se submetem à aferição de temperatura contra a disseminação da covid-19.
As teorias circulam por todo mundo, pois sempre encontram pobres de espírito e ouvidos afiados para escutar e retransmitir todo e qualquer tipo de delírio.
No início da pandemia, quando milhares de soldados americanos começaram as manobras da Otan na Alemanha, Attila Hildmann fez uma pesquisa no Youtube para ver do que se tratava, rapidamente encontrou vídeos postados por seguidores alemães do Qanon.
Na narrativa do Qanon, este não foi um exercício da Otan, foi uma operação secreta do presidente Donald Trump para libertar a Alemanha do governo da chanceler Angela Merkel – algo que eles aplaudiram. “O movimento Qanon disse que essas são as tropas que vão libertar o povo alemão de Merkel”, disse Hildmann, uma celebridade de culinária vegana que não tinha ouvido falar do Qanon. “Espero muito que o Qanon seja real”.
Nos EUA, o Qanon já evoluiu de uma subcultura marginal da internet para um movimento de massa popular, mas a pandemia está alimentando as teorias da conspiração para além das costas americanas, e o Qanon está se espalhando como metástase também na Europa. Afinal, se a pandemia acelera a crise não vai parar de existir gente que precisa colocar nome e sobrenome nos causadores, não importando se é certo, justo ou real.
Para o serviço federal de inteligência doméstica alemão: “tais teorias de conspiração podem se transformar em um perigo quando a violência antissemita ou violência contra funcionários políticos é legitimada com uma ameaça do Estado Profundo”.
Ao que parece o Qanon está atraindo uma combinação ideologicamente incoerente de oponentes da vacina, teóricos marginais e cidadãos comuns que dizem que a ameaça da pandemia é exagerada e as restrições do governo injustificadas.
Tudo isso requer muito cuidado, pois pode ser tênue a linha entre o cuidado com a veracidade do texto publicado e a censura propriamente dita.
É sem dúvida um momento delicado, pois basta uma fagulha para que ela logo vire fogo, daí nasce mais um “escândalo” e a pressão midiática para provocar a onda do populismo punitivo, mesmo que não se tenha apurado a verdade.
As redes sociais estão em busca de serem porta vozes da verdade, uma tarefa difícil que mais parece o enxugamento do gelo.
(Artigo publicado no site www.jusbrasil.com.br)