O endurecimento das regras europeias no combate a desinformação pode dar o tom do que devemos ver aqui no Brasil.
Que a desinformação é um grande negócio, onde fiéis cegos seguem falsos mitos e onde redes sociais faturam milhões com o tempo desperdiçado de seguidores de boa fé, todos sabemos. Que o mundo procura estabelecer um limite a tanta desinformação, isso também sabemos, mas o que não sabemos é quando teremos fim nesse trabalho que mais parece de enxugar gelo, onde a lógica comercial das redes sociais parece prevalecer sobre a ética e os valores humanos.
Na última semana, em mais um passo para combater a desinformação, o comissário europeu para o Mercado Interno, Thierry Breton, anunciou que o Twitter abandonou o código voluntário contra a desinformação patrocinado por Bruxelas, mas avisou que a empresa liderada por Elon Musk terá, em qualquer caso, de aplicar as novas regras dos serviços digitais se quiser continuar a operar na UE.
Nas palavras de Breton, “Você pode correr, mas não pode se esconder. Lembro que além dos compromissos voluntários, o combate à desinformação será uma obrigação legal sob a Lei de Serviços Digitais a partir de 25 de agosto.
O código de conduta contra a desinformação, ao qual empresas como a Google, a Meta ou o TikTok continuam a aderir, inclui compromissos voluntários para impedir que aqueles que disseminam informações falsas recebam receitas publicitárias e para reforçar medidas que tentam evitar fenómenos como contas falsas, bot farms que amplificam mensagens enganosas ou roubo de identidade.
Desde a compra do Twitter por Elon Musk, em outubro passado, a plataforma parou de alertar seus usuários sobre informações potencialmente falsas espalhadas sobre a Covid-19 e mudou a funcionalidade do”selo”azul do usuário verificado para torná-lo um modelo de assinatura não filtrado e não para distinguir perfis relevantes com identidade verificada.
Quase vinte grandes plataformas digitais com cerca de 50 milhões de usuários apenas na União Europeia, já aderiram e a partir de 25 de agosto terão de cumprir os novos requisitos de transparência sobre conteúdos na Internet e combate à desinformação. Se não o fizerem, Bruxelas pode aplicar uma multa de até 6% do seu volume de negócios anual a nível mundial.
Isso inclui Twitter, TikTok, Instagram, Wikipedia, Facebook e diferentes serviços do Google, incluindo seu mecanismo de busca, funcionalidade de mapa e loja de aplicativos.
Essas empresas enfrentarão requisitos rigorosos, como remover rapidamente conteúdo ilegal, garantir que a publicidade direcionada não seja direcionada a menores e limitar a disseminação de desinformação e conteúdo prejudicial, como cyberbullying.
Esse debate, que em que pese os delirantes de plantão no Brasil, não foi causado pelo Supremo Tribunal Federal, mas sim um movimento mundial, para o bem e a sanidade mental de todos, me faz lembrar Sir Francis Bacon, que afirmava que: “conhecimento é poder”, e evidentemente a frase continua atual e desde sempre o uso e controle da informação, que fosse conhecimento e não apenas barulho pode sedimentar o controle de muitas gerações.
Ao deter e manipular de forma conveniente a informação muitas guerras foram vencidas e eleições levaram aos governos governantes despreparados com o falso ar da mudança.
Para Viktor Mayer-Schonberger, um defensor da privacidade, estamos vivenciando agora nada menos do que uma “redistribuição do poder da informação dos fracos para os poderosos”. Se todos soubéssemos tudo sobre todos os outros, seria uma coisa; no entanto, algo muito diferente ocorre quando entidades centralizadas sabem muito mais sobre nós do que nós sabemos uns sobre os outros–e, às vezes, mais do que sabemos sobre nós mesmos. Se conhecimento é poder, assimetrias de conhecimento são assimetrias de poder. Logo o controle dos instrumentos digitais de propagação de conteúdo, é um grande aliado para construção da desinformação que rouba tempo e conduz inocentes entre outros.
Os filtros de informação nunca estiveram tão ativos, e por ele sua ingenuidade funciona multiplicando a desinformação, gerando desatenção aos dados que realmente importam
Essa é a lógica da sociedade da desatenção, gerar mais e mais informação procurando a sua atenção e produzir como resultado a desatenção.
A ausência de um sistema eficiente, depurador das Fake News contribuiu para o derretimento da credibilidade das redes sociais, e com tanta notícia biliar elas viraram zona de conflito de versões na disputa pela verdade, ou apenas pelo protagonismo de influenciar.
As plataformas digitais, notadamente as redes sociais, viraram o grande espaço de divulgação na última década, ocorre que na mesma velocidade com que cresceram ampliaram-se os problemas na divulgação de conteúdo falso que levou muito dano a saúde pública e a imagem de muitas pessoas.
As regras de compliance nessas redes sociais foram sendo edificadas na medida que surgiam os escândalos denunciados pela mídia tradicional, sendo o Grupo Meta (Facebook, Instagram, Mensenger WhatsApp) o líder dessa desgastada relação, onde a verdade foi sempre a maior das vítimas na proliferação de todo tipo de sandice ao longo dos anos.
A falta de um modelo regulatório maior, permitiu que redes sociais como o Facebook virassem protagonista de muito processo eleitoral, para o bem e para o mal.
As redes e o seu “empoderamento”, deram vozes no primeiro momento até a calibragem pelos algoritmos, e logo desconhecidos viraram celebridades da noite para o dia. O curioso é que mesmo estando diante de novas gerações, com absurdo acesso a informação de qualidade, esses jovens estão mais preocupados em “causar” no protagonismo da fonte, do que identificar se o que dizem e espalham faz sentido, e logo essa ausência de compliance derreteu a credibilidade das redes sociais que tudo aceitam.
São tempos, onde os extremos das opiniões e notícias assumem o protagonismo da verdade. O que mantém Freud atual quando sobre a comunicação de massas onde nela: “A maldade é a vingança do homem contra a sociedade pelas restrições que ela impõe. […] É o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura”
A reconstrução dos valores, passa por ressignificar a verdade, onde o empoderamento deve ser dos fatos narrados e comprovados e não de falsos protagonistas que procuram minutos de fama, embalados por interesses pessoais e insensíveis a verdade e as pessoas.
É uma mudança de um paradigma que atravessa décadas. A ideia de grupos de pessoas reunidas online em torno de interesses comuns foi descrita pela primeira vez em 1993 pelo acadêmico americano Howard Rheingold, que cunhou a expressão “comunidade virtual”. Em 2003, o Friendster emprestou alguns dos conceitos de Rheingold para inaugurar oficialmente a era das redes sociais.
Nos anos posteriores, veio uma chuva de serviços que apostavam nas conexões entre pessoas conhecidas como mola propulsora do conteúdo online. Os brasileiros, por exemplo, se apaixonaram pelo Orkut em 2004. No mesmo ano, Zuckerberg criou, dentro da Universidade Harvard, o Facebook. A premissa dos serviços era reunir gente dos mesmos círculos sociais.
Foi Zuckerberg, porém, quem melhor entendeu o poder do conteúdo mediado por parentes e amigos. Em 2006, ele lançou o Feed, o que não apenas permitia às pessoas se conectar, como também compartilhar posts.
Lançado em 2018, o TikTok ignorou a ideia de conexão de conhecidos. A empresa, que autodenomina seu app como uma plataforma de entretenimento (e não uma rede social), focou nos criadores de conteúdo e nas ferramentas de edição. O segredo do sucesso, porém, era o algoritmo de distribuição.
Lembro que em 1980, Jon Postel, um pioneiro da rede, enunciou um princípio de robustez para o TCP/IP que acabou conhecido como “a lei de Postel”: “para a rede se manter sólida e funcional, devemos ser conservadores no que fazemos, e liberais no que aceitamos dos demais”. É a própria definição de comportamento tolerante e sensato. Extrapolemos a “lei de Postel” para o comportamento dos usuários da rede e resultará que, se é certo que receberemos coisas indesejadas, falsas, ofensivas, até perigosas, de nosso lado, porém, deveríamos sempre agir de forma ética e contida.
Nesse momento na Internet estão conectados smartphones, notebooks e outros equipamentos fabricados por milhares de companhias diferentes. A própria Internet é formada por mais de 50 mil redes diferentes, administradas por instituições diversas, usando equipamentos de várias centenas de fabricantes. Como tudo isso funciona em conjunto? Bem essa ampliação de canais de comunicação, com a acessibilidade de todos, ao mesmo tempo que democratizou o acesso, possibilitou que a nossa rotina fosse invadida por todo tipo de conteúdo e de pessoas, gostemos ou não.
Portanto um dos desafios em meio a essa turbulência de informações, é conquistar algum controle sobre o mundo contando histórias sobre o mundo, com nossas intervenções, nem sempre exitosas de dar uma certa crítica a narrativa delirante.
Um marco de referência para esse período bem poderia ser o escândalo do Wikileaks, que pode dar uma primeira dimensão a essa zona cinzenta de desinformação.
Assange redigiu uma análise do sistema conspiratório do governo e como atacá-lo, com o título “A conspiração como governança”. Para Assange, todos os sistemas autoritários são conspirações porque seu poder depende de guardar segredos de seu povo. Os vazamentos minam esse poder não por causa do que vaza, mas porque o incremento no medo e na paranoia internos prejudica a capacidade de o sistema conspirar. O que é prejudicial não é o ato do vazamento em si nem o conteúdo do vazamento em específico.
Com o tempo o Wikileaks acabou servindo para alimentar a guerra entre as inúmeras agências informação e os seus respectivos governos, com as mais variadas trocas de acusações.
E assim, as redes e o nosso espírito por ter sempre uma fé maior no campo do imaginário e fantasioso, seja pela dureza da realidade ou pela paixão lúdica pela fantasia, tornou a internet um ambiente pouco saudável para verdade, onde nunca se teve tanta informação e de onde brota tanta ignorância.
Tente ver nas notícias que aparecem compartilhadas em suas redes sociais por alguns dos seus amigos e você vai ficar impressionado com a fonte, invariavelmente desconhecida delas, de veículo de comunicação com nomes similares e parecidos aos grandes veículos, e com jornalistas e ou articulistas dos quais você nunca ouviu falar, afinal, boa parte deles são apenas robôs programados para distribuir conteúdo mentiroso, que cria barulho e desinforma.
Dentro desse contexto, amplia-se a importância do Marco Civil da Internet no Brasil através da Lei 12.965/14, e que estabelece, em seu segundo artigo, que a disciplina de “uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão”, bem como a “pluralidade e a diversidade” e, também, a finalidade social da rede. Dentre os princípios, previstos no artigo seguinte, além da liberdade de expressão, há necessária indicação da preservação da “natureza participativa da rede”, propiciando a continuidade de liberdade de interação/participação neste ambiente digital que é a Internet. Pari passu, é importante analisar a proximidade cultural advinda das comunidades virtuais e, também, as características e peculiaridades da Internet nas inter-relações multiculturais e globais e ela precisa ter uma linguagem técnica única, ainda que nas redes sociais as diferenças sejam gigantes.
Artigo publicado originalmente no site www.jusbrasil.com.br, em 10 de junho de 2023.