TRIBUTANDO AS GRANDES FORTUNAS

A pandemia que acelerou a transformação digital no mundo é a mesma que faz com que governos parem pra rediscutir o seu modelo fiscal.

A única certeza que todos temos, é que a pós a pandemia todos de uma maneira quase que geral ficamos mais pobres, e poucos são os que conseguiram ficar mais ricos, e essa lógica fica ainda mais acentuada com a transformação digital.

A possibilidade de ascensão social no nosso caso sempre depende da melhoria nas condições de ensino, e quando a crise faz a evasão escolar explodir, sabemos que o que nos espera no médio prazo é uma piora ainda maior na renda de todos.

Lembro que um estudo feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostrou que o Brasil é o país em que terminar o Ensino Superior garante a maior vantagem salarial em relação ao Ensino Médio completo e ao incompleto, entre 37 nações avaliadas uma remuneração em média 144% maior. No entanto, apenas 21% da população entre 25 e 34 anos termina o Ensino Superior, e a escassez de profissionais é justamente a grande causa da valorização: com dificuldade de conseguir profissionais mais qualificados, as empresas remuneram muito bem aqueles que encontram, uma aberração que apenas alimenta a desigualdade. Uma solução paliativa para esse complexo quebra-cabeça de harmonização entre disrupção e desenvolvimento social é uma proposta que tem sido defendida por grandes nomes do empreendedorismo no Vale do Silício, como Mark Zuckerberg, do Facebook, e Elon Musk, da Tesla Motors: a renda mínima. Seria uma garantia de renda para as pessoas mais vulneráveis, com menor nível de escolaridade, cujos postos de trabalho foram extintos.” Esse ponto que já tratamos em outros artigos, também é defendido por Antonio Salvador e Daniel Castello no seu livro “Transformação Digital: Uma jornada que vai muito além da tecnologia”. Logo na visão fiscalista de muitos uma das opções de distribuição de renda seria a criação de um tributo sobre grandes fortunas.

Sem dúvida que esse é um tema importante do ponto da justiça tributária, pois a maior parte da renda das pessoas muito ricas tende a permanecer na forma de ganhos não realizados, sobretudo em ações, o que acaba produzindo como resultado uma tributação muito mais favorável.

Surge então uma proposta do governo Biden tratando desse tema, o que faz com essa deixe de ser uma proposta da esquerda, na visão delirante de fanáticos por político, que veem em toda proposta distributiva o DNA da esquerda, o que só empobrece esse importante debate. Aparentemente a proposta do governo Biden é uma solução alternativa, operacionalmente mais simples e, em princípio, mais aceitável politicamente (ainda que sua aprovação não esteja assegurada), como destacou Bernardo Appy em recente artigo.

Que faz uma importante ressalva: ”A não tributação do ganho não realizado é um problema menos discutido no Brasil, em parte porque aqui a tributação do lucro se dá integralmente na empresa, e não na distribuição. Mas há, sim, problemas de diferimento ad aeternum da tributação de pessoas de alta renda no País, sobretudo através de fundos fechados e de offshores.

Por isso, e porque a tendência é que o Brasil reduza a tributação do lucro na empresa e passe a tributar a distribuição (aproximando o modelo brasileiro do vigente na maioria dos países desenvolvidos), é importante que estejamos preparados para discutir o tratamento da renda não realizada das pessoas mais ricas. Acompanhar a discussão que ocorrerá sobre a proposta de Biden é um bom começo. Dado o risco de mudança de domicílio fiscal (mais relevante no Brasil que nos EUA), o ideal é que a solução para o problema fosse global, e não apenas doméstica.”

No caso do projeto de Biden, a medida, sob o título de “Imposto de Renda Mínimo dos bilionários”, contempla uma alíquota de 20% ao patrimônio das 700 famílias mais ricas do país. Se tiver sucesso nos termos atuais, representaria uma mudança radical e sem precedentes na política fiscal dos EUA. Por exemplo, isso significaria um gasto extra de US$50bilhões para o fundador da Tesla, Elon Musk, e cerca de US$35bilhões para Jeff Bezos, fundador da Amazon.

A medida afetaria as famílias com um patrimônio líquido de mais de US$ 100 milhões, mas a maior parte do impacto cairia sobre bilionários. O imposto não seria levantado como um acordo anual, mas sim como um pagamento único ou pagamento parcelado que seria então atualizado dependendo de como o imóvel é reavaliado. De fato, o projeto inclui um período de cinco anos para desembolsar o valor de até 20% da renda real, além de um período inicial de nove anos para lucros não realizados em anos anteriores (ou seja, aumentos de capital no valor de ativos não vendidos, como participação em empresa familiar ou ações em empresas listadas).

A Casa Branca defende essa proposta com o argumento de que pelo menos as 400 famílias mais ricas do país têm uma carga tributária abaixo de 8%, enquanto o resto dos cidadãos do país carrega a maior carga tributária. Isso porque nos EUA ele não é tributado pelo aumento do valor do ativo até que o ativo não seja realizado, ou seja, até que ele não seja vendido ou herdado.

O ‘Imposto Mínimo sobre a renda dos bilionários’ contempla uma alíquota mínima de 20% para todos os rendimentos, tanto aqueles recebidos anualmente por meio de salários, dividendos ou ganhos de capital, quanto aqueles não realizados, mas contabilizados, através do aumento do valor patrimonial. Aqueles que já fizeram um desembolso semelhante ou maior do que esse percentual não terão que pagar mais. É o caso, por exemplo, daqueles que receberam uma herança recente e liquidaram o imposto sobre heranças, mas os ativos ainda não foram reavaliados ao longo do tempo.

A Casa Branca estima que essa medida fiscal poderia arrecadar cerca de 360.000 milhões de dólares (328.000 milhões de euros) nos próximos dez anos, quando o período facilitado para alcançar esse imposto especial termina.

Nesse momento, resta saber o acolhimento da ideia no Congresso dos EUA, onde um bloco defende que esse tipo de carga tributária seja canalizada através do imposto sobre heranças, e não através da supervisão do patrimônio de uma pessoa na vida.

Durante o governo Biden, a carga tributária sobre grandes fortunas foi aumentada, mas até agora não havia sido proposta uma iniciativa diretamente focada nas famílias mais ricas do país, entre outras coisas, devido à falta de apoio no Congresso.

Acompanhando esse movimento que deve ganhar força, na Espanha já está sendo proposto um imposto que complementa a tributação do Patrimônio de 3,6% a 5% incidente sobre as fortunas que excedam a 10 milhões de Euros.

O Imposto no caso espanhol, seria sobre a propriedade, posse, disponibilidade, fruição ou uso de bens ou direitos por pessoas com grandes fortunas. Lá como nos EUA, o objetivo, argumenta o grupo que está propondo, é “avançar na construção de um sistema tributário justo, aumentar sua equidade vertical e contribuir positivamente para a sustentabilidade do Estado de Bem-Estar Social”.

A tecnologia que mostra a nossa evolução é sempre a mesma que instrumentaliza a desigualdade e as nossas diferenças, é o acesso igual e isonômico a ela que funciona como agente da transformação.

Tecnologia desiguala empresas seus produtos e serviços, cria um fosso entre pessoas, registra e aprova o tamanho da desigualdade e serve de certidão para o a indelével marca da desumanidade e barbárie que não diminui com o tempo, apenas altera as suas formas.

Olhe ao seu redor, nas calçadas das nossas cidades, sejam elas grandes ou médias, onde muitas vezes adolescentes caminham com seus celulares de último modelo, e seguem digitando interagindo nas suas redes sociais enquanto o mundo passa aos seus olhos. Na mesma calçada o pedinte incrédulo, que tudo observa, acompanha o caminhar de todos na esperança de encontrar solidariedade e atenção em meio a passos apressados, dedos nervosos e olhos atentos às telas dos seus celulares.

Certamente o universo parece caminhar em velocidades distintas, numa formação de astros que não conversam a mesma linguagem, e tampouco a mesma trajetória, nas ruas onde a miséria cresce quase que na mesma velocidade dessa tecnologia.

O efeito dessa nova economia, está bem destacado na obra, “O capital no século XXI”, do economista francês Thomas Piketty que analisou a crescente disparidade de posses entre uma minoria de muito ricos e o resto do mundo. Nos Estados Unidos, em 2014, o 0,01% mais rico, que consiste em apenas 16 mil famílias, controlava 11,2% de toda riqueza, o que pode ser comparado a 1916, época da maior desigualdade mundial. Hoje o mesmo 0,1% detêm cerca de 22% da riqueza total, o mesmo que 90% de toda população na base da pirâmide, sendo que igual distorção não é muito diferente na Europa.

É preciso repensar o modelo tributário, pra que ele possa corrigir distorções e se adequar aos novos fatores da economia digital, do contrário estaremos diante apenas de novas e mais amplas desigualdades sociais.

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