Na rua movimentada, duas adolescentes caminham com seus celulares de último modelo, e seguem digitando interagindo nas suas redes sociais enquanto o mundo passa aos seus olhos. Na mesma calçada o pedinte incrédulo, que tudo observa, acompanha o caminhar de todos na esperança de encontrar solidariedade e atenção em meio a passos apressados, dedos nervosos e olhos atentos às telas dos seus celulares.
Certamente o universo parece caminhar em velocidades distintas, numa formação de astros que não conversam a mesma linguagem, e tampouco a mesma trajetória, nas ruas onde a miséria cresce quase que na mesma velocidade da tecnologia.
Em uma reportagem do estadão dessa semana, o cozinheiro Hélio Felix, de 55 anos, que abandonou Torres (RS) após perder o emprego em um hotel, conta que se mudou para São Paulo na tentativa de se reerguer. Enquanto não consegue, mora sob o Minhocão, no centro. Sem jeito, ele conta que chegou a ficar cinco dias sem tomar banho. Agora, o desempregado ganhou uma barraca de uma ONG, mas anda com as poucas roupas que restaram na mochila preta, puída.
O aumento da população em situação de rua em São Paulo, alavancado pela crise econômica e pela pandemia, acirrou a disputa debaixo de pontes e viadutos, menos expostos à chuva e às violências. Calçadas, parques e avenidas representam risco maior, além da total falta de privacidade.
Na entrevista ele conta: “Não tenho vícios, não fumo e não bebo. Meu sonho é encontrar um emprego. Estou esperando a resposta de um supermercado”, acrescenta Felix, viúvo, que está em busca de uma nova companheira.
Em 2015, a cidade tinha 16 mil pessoas vivendo nas ruas. No último censo, de 2019, o número subiu para 24.344.
Essa é apenas uma fotografia, de uma sociedade que evolui com tecnologias de última geração, e parece ser incapaz de resolver problemas tão simples, aumentamos o número de alimentos produzidos e nada disso nos permite alimentar a fome de quem tem fome, pois para esses a lógica parece ser outra, indiferente e cruel.
A desigualdade permanece e se amplia, nos meios e no acesso instrumental para mudança de paradigma.
Vejamos pela educação, em uma pesquisa divulgada em de 2020, pelo Instituto DataSenado mostrou que a diferença entre a educação na rede pública e na privada também se revela no acesso dos alunos ao ambiente digital. Dos lares brasileiros cujos estudantes estão tendo aulas remotas na rede pública, 26% não possuem internet. Quando a pesquisa olha para os colégios particulares, o total de alunos sem conexão online cai para 4%.
Os números falam por si, pois em julho de 2020, essa migração provocou um aumento de 73% só na rede municipal de educação infantil de São Paulo. Onde o levantamento da OCDE também mostrou que o número de dias de escolas fechadas prejudicou mais os estudantes brasileiros do que os alunos dos demais países. No final de junho as escolas brasileiras estavam há 16 semanas sem aulas presenciais, cerca de 2 semanas a mais do que a média das escolas dos países avaliados. No início de setembro, só oito dos países avaliados ainda permaneciam com as aulas suspensas, entre eles, o Brasil.
É o capital humano que faz a diferença na transformação digital, mas é preciso o mínimo de infraestrutura tecnológica para que possamos formar esses profissionais, não é apenas um requisito laboral, mas sim uma questão de valor humano. A cidadania digital, se faz com acesso pleno a todos e não apenas poucos favorecidos.
A nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabelece jornada diária de quatro horas. Mas durante a pandemia a jornada ficou em cerca de 2,3 horas. Dos 30 milhões de estudantes entre 6 e 15 anos, a FGV Social calcula que cerca de 4 milhões (13,5%) não receberam qualquer atividade para ensino remoto. Entre os adolescentes de 16 e 17 anos, foram 17,6%. Esse apagão está massivamente concentrado nas classes baixas e nos Estados mais pobres.
Como destacamos, a falta de oferta se dá pela falta de conectividade, de dispositivos digitais e de envio de material por parte da rede de ensino. Segundo o Ipea, 16% dos alunos do Ensino Fundamental (cerca de 4,35 milhões) e 10% dos alunos do Ensino Médio (780 mil) não têm acesso à internet. Paralelamente a esses dados da rede pública, os números das redes privadas e da classe A, são bem diferentes, pois lá cerca de 100% dos estudantes possuem acesso, já nas classes D e E são apenas 40%, e depois tem deslumbrado que ainda vai falar em meritocracia. “Acorda Alice”.
E qual o papel da tecnologia? Parece claro que a tecnologia é um ambiente que dota as empresas com uma capacidade desesperada de exercer o poder monopólio em muito menos tempo do que antes, e isso exige que os governos tenham muito mais pressa em sua regulação.
Compreender esse futuro é requisito para pequenas intervenções no desenho dele, pois ele é para poucos, é desigual e exige ajustes para que não sejamos atropelados.
O efeito dessa nova economia, está bem destacado na obra, “O capital no século XXI”, do economista francês Thomas Piketty que analisou a crescente disparidade de posses entre uma minoria de muito ricos e o resto do mundo. Nos Estados Unidos, em 2014, o 0,01% mais rico, que consiste em apenas 16 mil famílias, controlava 11,2% de toda riqueza, o que pode ser comparado a 1916, época da maior desigualdade mundial. Hoje o mesmo 0,1% detêm cerca de 22% da riqueza total, o mesmo que 90% de toda população na base da pirâmide, sendo que igual distorção não é muito diferente na Europa.
O progresso implacável da automação, de caixas de supermercado a algoritmos de transação financeira, de robôs em fábricas a carros com direção automática, cada vez mais ameaça a empregabilidade humana no panorama geral. Não existe rede de segurança para aqueles cujas habilidades são obsoletadas pelas máquinas, e nem aqueles que programam as máquinas estão imunes.
Um artigo interessante publicado no Fórum Econômico Mundial, aponta que a Inteligência Artificial estaria pronta para interferir na ordem mundial estabelecida perpetuando distorções. Um relatório da Tortoise Intelligence no qual, entre muitas outras conclusões, a abordagem centralizada da China para a pesquisa de inteligência artificial parece estar gerando, em termos de produtividade, uma eficiência muito maior do que seu concorrente tradicional, os Estados Unidos, que opta por iniciativas de pesquisa espalhadas entre muitos concorrentes privados ligados a algumas iniciativas públicas ou públicas impulsionadas pelo dinheiro.
Ainda que até 2020 os Estados Unidos superem qualquer outro país do mundo em volume total de investimentos sobre o tema, mas uma parte muito importante desse investimento faz parte de múltiplas iniciativas privadas e independentes que não fazem parte de qualquer tipo de estratégia consolidada ou expressa como tal, ou seja é investimento sem controle, disperso e sem política centralizada como na China.
Nesse momento a China é a segunda, porém as políticas industriais que seu governo está conduzindo de forma coordenada e centralizada comprometem um nível de gastos com inteligência artificial na década de hoje que aparentemente eclipsará o dos Estados Unidos. De acordo com Tortoise, o valor dos planos de gastos com inteligência artificial da China é uma vez e meio maior do que todos os outros países do mundo juntos, e já gasta mais do que os Estados Unidos em pesquisas básicas e aplicadas em áreas relacionadas à inteligência artificial, e seu emprego na educação como salientei em recente artigo sobre “Inteligência Artificial na Educação”.
Logo, construir ecossistemas que possibilitem e promover a pesquisa em inteligência artificial e suas aplicações é, em um ambiente que condicionará a competitividade de muitos ou todos os setores da economia, fundamental para a redefinição do papel de diferentes países e seu peso na geopolítica global.
A disseminação do uso da inteligência artificial estará sujeita à aceleração progressiva que caracterizou os ciclos de adoção nos últimos anos, e resultará em uma série de líderes e inúmeros retardatários, que levarão mais tempo para aproveitar essas vantagens em seus sistemas de produção e cujas economias permanecerão sujeitas mais tempo às regras da velha economia, com uma crescente lacuna de produtividade. Métricas antigas, como a criação de empregos, não terão mais uma aplicação relevante à medida que as máquinas se tornam capazes de substituir cada vez mais vantajosamente o trabalho humano por maior produtividade e menos erros, e isso proporcionará aos países que fazem mais progressos nesta linha a oportunidade de testar melhor novos esquemas sociais decorrentes dessa evidência. Estamos falando de uma tecnologia cujas aplicações praticamente redefinirão as sociedades humanas e, acima de tudo, sua relação com o trabalho como a entendemos.O uso da Inteligência Artificial é definitivamente complexo e pode sim perpetuar e ampliar diferenças sociais.
Com a ordem executiva assinada pelo Presidente, Joe Biden, em 9 de julho, intitulada “Ordem Executiva para Promover a Concorrência na Economia Americana”, foi a maior iniciativa tomada até agora pelo governo dos EUA, diante da tão necessária redefinição do capitalismo por Milton Friedman e pela Escola de Chicago. Com esse movimento, ele dá continuidade aos passos anteriores quando havia nomeado acadêmicos estudiosos das leis antitrustes como Tim Wu, Lina Khan entre outros, em detrimento as teses que reinavam no governo anterior de Robert Bork e do neoliberalismo da Escola de Chicago, que foi inclusive citada em seu discurso.
Muitos relembraram do discurso de 1938 de Franklin f. Roosevelt, onde ele destacava a importância das pequenas empresas e dos direitos dos trabalhadores bem como dos consumidores.
Na sua fala Biden, Biden destacou a necessidade de confrontar as Big Tech(s), a Big Pharma(s) e as Big Ag(s), e reprisou Roosevelt, para se referir a uma declaração de direitos econômicos, com propósito de garantir o “direito de todo empreendedor, seja ele grande e ou pequeno, de negociar em uma atmosfera livre de concorrência desleal e domínio monopólio no país ou no exterior”.
Mas muito mais importante foram as críticas explícitas de Biden à Escola de Chicago:
Biden disse ainda: “Quarenta anos atrás, escolhemos o caminho errado, na minha opinião, seguindo a filosofia errada de pessoas como Robert Bork, e paramos de aplicar leis que serviam para promover a concorrência. Passamos 40 anos na experiência de permitir que corporações gigantes acumulassem mais e mais poder. E o que ganhamos com isso? Menos crescimento, investimento enfraquecido, menos pequenas empresas. Muitos americanos que se sentem abandonados. Muitas pessoas que são mais pobres que seus pais. Acho que o experimento falhou.
O que levou a várias décadas de capitalismo selvagem e não regulamentado? Muito simplesmente, uma América menos competitiva, dominada por grandes conglomerados empresariais que agem à margem de tudo, que não pagam impostos e que influenciam desproporcionalmente políticos de todas as faixas.
Um discurso para ser um divisor de águas na economia americana, pois o presidente ordena para que toda a administração busque tudo o que sugere abusos de poder e condições de distorção do mercado, da reintrodução da neutralidade da rede e da eliminação da qual não só significava menos investimento em infraestrutura e preços mais altos, para o rigoroso controle de cláusulas de não concorrência que impediam a liberdade de circulação de muitos trabalhadores ou a reintegração do direito de fixar nossos próprios dispositivos.
Biden é claro: “sem concorrência o capitalismo é apenas exploração’. Logo é fundamental que o estado seja dotado de mecanismos legais que mantenham a concorrência de forma equilibrada.
O governo federal fará da redução de práticas comerciais injustas e monopolistas uma prioridade absoluta a partir de agora. Especialistas em concorrência concordam que ele envia um sinal claro para as grandes empresas: os tempos estão mudando.
Acabar com as teses prejudiciais da escola de Chicago foi fundamental para redefinir a economia americana e acabar com décadas de abuso, em um país que tem sido dominado por grandes e abrangentes corporações corporativas.
As iniciativas de Biden, coincidem não apenas com a União Europeia, que vem tentando colocar limites as grandes corporações, mas também com propostas semelhantes no que é, sem dúvida, o país mais capitalista do mundo, a China, que já vem criando limites as empresas chinesas de tecnologia.
Esses movimentos nos polos extremos, colaboram no movimento que procura uma redefinição do capitalismo uma tendência mundial, e uma prova clara de que se realmente queremos enfrentar os problemas do mundo de hoje, nunca podemos fazê-lo fingindo usar o mesmo sistema que os causou.
Querer simplificar seu uso, e ou controle é comum aos ignorantes que não tem a dimensão do que estamos diante, onde a lógica da competição e do domínio de mercado tendem a acelerar essas distorções. Um mundo com maquinas cada vez mais inteligentes em sociedades cada dia mais desiguais.
Os números mostram que erramos, e é preciso reinventar um universo novo e mais justo de oportunidades para todo, e que elas sejam iguais.