STREAMING, ISOMORFISMO E A SOCIEDADE DA DESATENÇÃO

O hábito de ver séries e filmes em canais de streaming modificou por completo um relevante segmento econômico, e claro dentro da lógica da disputa corporativa pelo nosso tempo e a nossa atenção os segmentos diretamente ligados ao entretenimento ganharam valor, e como sempre o mercado de capitais, atento a tudo que reluz ainda que nem sempre seja ouro, estruturou inúmeras ofertas de capital. Logo forma a bolsa a Netflix (canal de streaming) empresas de fornecimento de acesso à internet (Brisanet) entre tantas outras que devem seguir o mesmo caminho.

A economia que se move pela disputa da sua atenção move também produtoras de conteúdo, produtoras de meio para exibição desse conteúdo, mas nesse artigo destaco as plataformas de streaming na disputa da sua atenção, e o seu valor de mercado.

Desde o fim de 2021, com a redução dos nossos períodos em casa devido ao avanço da vacinação no mundo, alguns canais de streaming sentem a queda do número dos seus assinantes, e com isso do seu valor de mercado, movido pela redução da expectativa do crescimento e por óbvio do resultado, no caso da Netflix, os números parecem prever uma saturação de seu mercado, mas qual seria o problema?  As evidências são claras bem como o receituário que todos os canais de streaming estão tomando parece ser o mesmo: luta firme contra o compartilhamento de senhas, introdução de publicidade para usuários da faixa de preço mais baixa, conteúdo ao vivo, concursos, comédia ao vivo e afins, e, claro, a redução de pessoal.

Combater o compartilhamento de senhas?  Bem se um percentual significativo de seus usuários não está pagando pelo serviço, mas usando as senhas de outros pode significar, em uma empresa dedicada ao streaming, um certo dreno de recursos, mas a visão usual de Reed Hastings desde as origens do projeto foi que algo assim não prejudicava a empresa, o mesmo modelo de muitas empresas de softwares que faziam vista grossa pela baixa de programas piratas, ou seja, é melhor espalhar no início o hábito para depois apertar e cobrar a conta.

Publicidade? Limitada  a um certo grupo de usuários que concordam em pagar menos em troca de serem interrompidos por anúncios, o impacto pode não ser muito alto, mas, sem dúvida, ele se afasta da cultura tradicional de respeito ao conteúdo que prevaleceu no Netflix original. Esse tipo de coisa funciona como uma ladeira escorregadia: você começa com “apenas para alguns usuários” e “apenas no início de cada episódio”, e você acaba colocando um corte no meio da cena chave de um filme cult, ou colocando um macaco para apertar o botão como muitas redes de televisão tradicionais fazem, ou seja vamos colocando até eles reclamarem, fazendo a medida da relação de qual é o número ideal de inserções sem perder a atenção.

Ao vivo? Muito bom, mas de novo… o Original Netflix alegou que este não era o seu terreno, e ensinou seus assinantes a esperar outros tipos de conteúdo, mais cuidadosos, com mais qualidade, com outra abordagem. Na verdade, a principal reclamação dos usuários da Netflix hoje não é que ela aumentou seus preços, mas que o fez em troca de conteúdo pior, o que indica claramente uma mudança na maneira de decidir em qual conteúdo apostar e quais não.

Demissões e redução de pessoal?

Simplesmente, que a estratégia deve transformar a Netflix e muitos outros canais de streaming, e vai transformá-la em algo muito semelhante a uma rede de televisão tradicional. Vamos pensar sobre isso: o que levou milhões de usuários a serem entretidos pela Netflix e passar horas com a Netflix e aos outros canais de streaming em frente a uma tela, quando antes eles se voltaram para uma rede de televisão tradicional? Muito simples: que a Netflix era diferente, muito diferente das redes de TV tradicionais. E por que a estratégia futura da Netflix agora se parece tanto com a de um canal de TV tradicional?

Como em tantas outras ocasiões, o isomorfismo: a imitação progressiva de um concorrente para se assemelhar cada vez mais ao seu ambiente regulatório, neste caso, o resto da indústria do entretenimento. E isso é um problema, porque muitos dos assinantes da Netflix eram precisamente porque ele difere muito da indústria do entretenimento tradicional, cuja maneira de fazer as coisas, além disso, estávamos bastante fartos há algum tempo.

Estamos diante de algo que vimos em inúmeras ocasiões em empresas de tecnologia: quando o fundador da empresa “se aposenta”, se dedica a outras questões e abandona a gestão cotidiana, ele pode ser tentado a deixá-lo nas mãos de uma segunda geração de gestores, e cometer o terrível erro de recrutá-los não entre seus próprios gestores treinados na cultura fundadora, mas da indústria. De que indústria? Precisamente aquele em que sua empresa foi capaz de gerar uma interrupção. Como consequência, o componente disruptivo começa a se diluir, e a empresa converge cada vez mais para a estrutura tradicional, até que se assemelhe ao resto dos concorrentes.

O desafio financeiro, imposto pelo mercado de capitais leva muitas empresas ao caminho das soluções tradicionais, que envelhecem o que era novo, o que já vimos acontecer na Apple que quase faleceu nas mãos de John Sculley,  que transformou o Yahoo! em uma caricatura de si mesmo com Terry Semel,  ou google em uma empresa que perdeu seu lema e sua identidade sob Eric Schmidt, todos executivos tradicionais, que não entenderam o que é gerir uma empresa disruptiva.

O isomorfismo pode acontecer porque as formas não-ótimas são excluídas de uma população de organizações, ou porque os tomadores de decisões nas organizações aprendem respostas adequadas e ajustam seus comportamentos de acordo com elas, no típico copiar o tradicional.

Logo onde ficam os novos mercados? Os novos produtos? Os novos serviços? A perpetuidade de um negócio reside em um Steve Jobs, que lança um celular com tocador de música, mesmo quando o seu tocador de música tradicional tenha mais de 62% do mercado? Você consegue imaginar isso na sua empresa, lançar um novo produto que mate o seu líder de vendas?

As plataformas atingiram diversos setores do entretenimento e da economia organizada na medida que como negócio tocam no mesmo lugar do consumidor, seu bolso, logo na atual sociedade, como em toda história, todos os negócios concorrem sempre pelo bolso do consumidor, e logo plataformas de streaming concorrem com outras plataformas, seja elas de música ou de filmes, mas concorrem também com a Tv aberta, tv fechada, cinema, plataformas de streaming de música, You Tube e tudo que dentro da lógica da “economia de atenção” que eu chamo de economia da desatenção disputam seu tempo e seu bolso.

As séries geram hábitos tais quais as novelas, com a vantagem que escolhemos o horário e o ritmo que queremos ver, e por isso quando termina uma temporada de uma boa série ficamos no aguardo da sua continuação, e logo vem a frustração quando essas plataformas decidem descontinuar séries que julgamos interessantes, mas qual a razão dessa decisão dentro da lógica de retenção da sua atenção?

No passado, havia fatos claros sobre o sucesso do entretenimento. Um filme vendeu um certo número de ingressos na bilheteria. Um programa de TV foi assistido por um certo número de pessoas, de acordo com dados coletados pela Nielsen. Todos sabiam quando algo era um sucesso ou um fracasso.

Porém o streaming removeu esses critérios, e mesmo que a Netflix tenha começado a publicar alguns números de audiência, ela está limitada ao conteúdo mais popular

Sendo a maior ela é sempre objeto de estudos, e logo todos sempre ficam atentos para entender sua estratégia.

Não é de hoje que o uso de dados serve de alicerce para o planejamento e ação da Netflix e o tempo provou como essa estratégia lhe deu uma clara vantagem sobre estúdios tradicionais que tomaram decisões baseadas no “feeling” de um gerente. Os números da plataforma e seu resultado comercial nos dão evidências tangíveis sobre o resultado dessa estratégia.

Uma liderança baseada na implementação de uma estratégia completamente diferente da de outros concorrentes, que alguns já estão tentando imitar abertamente e que se baseia em duas questões fundamentais: a análise de dados já comentada, ou big data e apostas de longo prazo.

O uso dessa estratégia começou desde quando já enviava seus DVDs por correio, mas dos quais estava totalmente ciente quando começou a usar o streaming como meio de envio. Um canal que oferece não apenas uma capilaridade muito superior aos outros, mas um feedback quase que instantâneo, e acima de tudo, diferencialmente superior ao que um estudo tradicional é capaz de obter. Os dados de bilheteria podem ser interessantes, mas por mais que sejam esmiuçados, eles não são capazes de nos oferecer o nível de detalhe que temos na rede, com usuários que votam em tempo real com os cliques de seu mouse ou controle remoto. Tente imaginar que além de saber sobre as suas preferências, eles sabem também sobre seus hábitos, sua audiência instantânea, permite saber por exemplo em que momento você para a exibição e quanto tempo depois volta, qual a sua rotina? Quais são as séries mais exibidas e seus horários preferenciais, e dessa maneira organizar seu cardápio de forma distinta de acordo com a hora? Melhorando assim a sua experiência de consumidor”?

É óbvio que big data, em qualquer caso, não tem poderes mágicos, pois segundo os próprios gestores da Netflix, os dados obtidos desempenham, na tomada de decisões sobre a produção, um papel sempre condicionado ao da direção artística e é quando as oportunidades de assinaturas, contratos ou desenvolvimento e ideias relacionadas à produção de um filme ou série foram decididas a partir desse ponto de vista com um peso de cerca de 70%, quando a análise de dados entra em jogo, 30% da decisão geralmente relacionada ao volume de recursos que serão colocados no topo da tabela.

O avançar de recursos tecnológicos só deve reforçar a competitividade dos canais de streaming, sensores ligados aos aparelhos vão alimentar ainda mais esse big data, e é claro em um confronto direto com a proteção dos seus dados e da sua privacidade. Dados para melhor disputar o seu tempo e a sua atenção, e com tantos concorrendo pela sua atenção, sem que o seu bolso melhore, pelo contrário, quando a inflação avança sobre o seu poder aquisitivo, a economia da “desatenção” encontra o seu limite, que não está na audiência, mas no valor que seu cliente tem na conta para pagar por tantos serviços na disputa pela sua atenção.

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