Em tempos digitais, continuam atuais os ensinamentos de alguns filósofos, e claro, Sêneca tem papel de destaque nessa fogueira insana das redes sociais, onde os prisioneiros das bolhas procuram nas Fake News um conforto para viver seus tempos de transformação, onde a mentira confortante é e será para esses o melhor espaço para viver, afinal, insanos adoram mitos e mentiras que lhes deixem na confortável posição de pouca ou quase nenhuma reflexão.
Mas logo ele, Sêneca, melancólico e depressivo? Vamos ser justos, Lúcio Aneu Sêneca viveu em tempos difíceis, logo suas reflexões precisam ser contextualizadas, pois no primeiro século da nossa era, Roma era um palco instável e violento, bem distinto da carnificina das virulentas redes sociais, mas o filósofo, como muitos de nós em nossas rotinas, precisava conviver com pessoas caprichosas e poderosas. Sêneca ainda teve de enfrentar o exílio, a doença e, por fim, a condenação à morte. Sua carreira política foi construída durante uma sucessão de líderes tirânicos e imprevisíveis.
No ano de 49 d.C. Sêneca precisou assumir o cargo mais ingrato da administração do império: ser tutor de um garoto de 12 anos, chamado Lucius Ahenobarbus, o futuro Imperador Nero que, como diriam alguns influencers atuais, era “um tchutchuco bem temperamental”.
Desde logo, Nero já mostrava seus traços de psicopata homicida, por isso se lembre, ninguém brinca de ser ditador homenageando torturador, pois só sociopatas podem ter prazer na dor alheia.
É longa a lista dos hábitos de crueldade que alimentavam Nero, desde “convidar” seus desafetos ou donzelas abduzidas nas ruas, para as câmaras subterrâneas do seu palácio, onde ele friamente os executava, ou decapitar, desmembrar e lançar pessoas vivas aos leões e crocodilos. E qual era o crime dessas vítimas? Salvo raras exceções, nenhum. Gladiadores eram lançados ao lobos, simplesmente porque não proporcionaram um belo espetáculo ao imperador. Paranoico e obsessivo, às vezes, bastava um simples rumor para desencadear sua ira, imagina uma besta como essa nos tempos atuais sem os freios do legislativo e do judiciário?
E onde Sêneca e o seu estoicismo servem para o enfrentamento do caos das nossas redes sociais? Lembro que o estoicismo foi um movimento filosófico do período helenístico (Grécia séculos III e II a.C.), cujo nome deriva da varanda (stoa poikilê) na Ágora em Atenas, onde os membros da escola estoica se reuniam. Fundado por Zenão de Cício (322 a.C. – 262 a.C.), seu estabelecimento como filosofia se deve a três nomes que solidificaram com seus escritos a filosofia estoica: Sêneca (0-65 d.C.), filósofo famoso, Epitecto (50-125 d.C.), um escravo e o imperador Marco Aurélio (121-180). O estoicismo destaca-se de outras correntes filosóficas por acreditar que é preciso ir além da reflexão sobre a vida, colocando em prática um exercício (askêsis) diário e pessoal na direção de uma forma mais agradável de viver. Para os estoicos, a pessoa deve cultivar as quatro virtudes morais: Sabedoria (sophia), Coragem (andreia), Justiça (dikaiosyne) e Temperança (sophrosyne).
E o que seria nesses tempos, um estoico virtual? São tempos em que precisamos fazer uma distinção entre as coisas que estão sob nosso controle e as que não estão. De forma simplista, nossos pensamentos e atitudes estão sob nosso controle e todo o resto não, notadamente a imbecilidade que desfila nos feeds de notícias de nossas redes sociais, onde aquele amigo que nunca foi brilhante, teima em acreditar nas mais absurdas insanidades, como a eficácia de um vermífugo para combater um vírus, ou em vídeos que atestam que o presidente dos EUA é um pedófilo e que os milhões de eleitores dos EUA não sabiam, afinal essa era uma informação privilegiada que o seu amigo do grupo de futebol compartilhou só para os mais próximos. “Santa Inocência Batman.”
A assepsia digital é fundamental na escolha do que ver, silenciar, afastar ou até mesmo excluir do grupo de amigos, uma reflexão necessária capaz de distanciar e decidir sobre aquilo que deve ou não fazer parte do seu dia.
Sêneca não era otimista e tentou se afastar da corte. Por duas vezes, entregou ao imperador sua carta de demissão. Por duas vezes, ela foi recusada com um abraço, de Nero (que medo). E o argumento era o de que Nero preferiria morrer a fazer mal a seu tutor, porém, nada do que Sêneca via confirmava essas palavras, afinal psicopatas são grandes mentirosos, e se desfazem diariamente dos seus aliados.
Como destaca a Jornalista Margot Cardoso, em ótimo texto sobre Sêneca, usá-lo como leitura de cabeceira pode ajudar e muito a enfrentar os dissabores da vida digital. “Tanto Cartas de um Estoico quanto As Cartas a Lucílio, são manuais sobre a arte de viver.”
Certamente, a leitura dele não passa por lhe recomendar uma vida de privações, afinal o estoicismo não comporta essa redução.
O estoicismo sempre será útil para as adversidades e radicalismos dos tempos atuais, quase como uma capa protetora nesses tempos em que as redes sociais seguem no seu design maquiavélico para prender a nossa atenção.
Tem muita força e beleza nas suas palavras, como no facilitar e aclarar caminhos, em um convite para superarmos as nossas próprias limitações, que não são poucas.
Sêneca nos convida a aceitar a vida como ela é, fincando os dois pés no chão, e é aqui no domínio das emoções que encontramos a grandiosidade do pensamento de Sêneca. Se você fizer uma lista do que amarga a vida, você vai ver raiva, estresse, descontrole, frustração, desilusão… “Sêneca ensina a administra-las. Um exemplo simples: você está frustrado e irado. Mas a culpa não é sua, é do trânsito. As pessoas não sabem dirigir, fazem absurdos, colocam a vida dos outros em risco… A raiva no trânsito é um problema filosófico?” Como lembra Margot.
No geral, as pessoas criam expectativas elevadas, a realidade não as confirma, surge a sensação de surpresa e injustiça e, a partir daqui, a raiva. A verdade é que a confusão, a incompetência e a barbeiragem no trânsito não são injustas, nem surpreendentes, são fatos previsíveis da vida. Quem se zanga com elas tem expectativas erradas em relação ao mundo. E logo a “proposta de Sêneca”: seja mais pessimista em relação ao trânsito. O que ele propõe é que se aceitarmos que nem todos sabem dirigir bem, não vamos ficar surpreendidos e não vamos nos descontrolar quando nos depararmos com eles
Sêneca acreditava que um dos motivos da raiva, e também da frustração, do desapontamento, do estresse, e muitos outros sentimentos negativos, é imaginarmos que tudo será sempre do jeito que queremos, que somos capazes de moldar o mundo segundo os nossos desejos.
Não somos. Há muitas coisas que a única ação que nos cabe é aceitar. Nem sempre temos liberdade para mudá-las. Sêneca ilustrar essa condição da vida com uma comparação simples. Para ele, somos como cães amarrados a uma carroça em movimento. A corda é longa o bastante para dar alguma liberdade ao cão, mas não para permitir que ele vá além do seu comprimento. O cão logo se dá conta de que, para aumentar o seu conforto, ele precisa, algumas vezes, se contentar em seguir a carroça. Mesmo que ele não queira, essa é a melhor alternativa. Além da inutilidade do gesto, o cão vai em sofrimento, estrangulado pela superioridade da carroça. A síntese desse ensinamento de Sêneca é a sua famosa máxima “o destino guia quem o segue de bom grado, mas arrasta quem se recusa a segui-lo”.
Não se trata de acomodação, mas de entender o que não podemos mudar, do contrário, muitas pessoas que gostamos ou que amamos vão ficando pelo caminho, pois gostar e amar exige compreensão, mesmo em tempos tão radicais.