Quem acredita tudo saber, será sempre um naufrago diante de um iceberg, acreditando ser a ponta dele a expressão de que tudo vê e entende.
Por isso gosto dessa ilustração de Pawel Kuczynski, que nos coloca diante do iceberg do conhecimento, vemos pouco e existe uma imensidão por ser descoberta.
Esse é um fenómeno muito comum em tempos em que as pessoas se sentem empoderadas com o raso conhecimento das redes sociais, onde em poucos clicks nasce um cientista político, um “Dr. em Direito Constitucional” sentenciando as decisões do Supremo com a profundidade de um pires.
Com o derretimento dos grandes grupos de comunicação reina absoluta a desinformação patrocinada por chatbots, onde nossos amigos e seus dedos nervosos compartilham conteúdo sem nenhum critério ético ou de pesquisa pra melhor aprofundar a matéria.
Esse fenômeno do derretimento da intermediação do conteúdo já foi destacado em 2010, por Eric Schmidt, presidente do Google, ecoando esse sentimento, argumentando, na revista Foreign Affairs, que a internet eclipsa os intermediários e governos e dá poder aos indivíduos para que “consumam, distribuam e criem seu próprio conteúdo sem controle governamental”. Trata-se de um ponto de vista conveniente para o Google–se os intermediários estão perdendo poder, então a empresa não passa de um ator secundário numa trama muito mais ampla. Na prática, entretanto, a maior parte do conteúdo on-line chega às pessoas por meio de um grupo de sites muito reduzido–e o Google é o principal deles. Essas grandes empresas representam novos focos de poder. E embora seu caráter multinacional lhes permita resistir a certas formas de controle, elas também podem funcionar como uma espécie de “loja de conveniências” para governos interessados em influenciar os fluxos de informação. Basta existir um banco de dados para que ele seja potencialmente acessível ao Estado. É por isso que os ativistas que lutam pelo direito à posse de armas nos Estados Unidos falam tanto de Alfred Flatow. Flatow era um ginasta olímpico e judeu alemão que, em 1932, registrou sua arma de acordo com as leis da decadente República de Weimar. Em 1938, a polícia alemã bateu à sua porta. Eles haviam examinado o registro e, em preparação para o Holocausto, estavam aprisionando judeus que portavam armas. Flatow foi morto num campo de concentração em 1942. Para os membros da National Rifle Association, a história serve como alerta sobre os perigos de um registro nacional de armas. Graças à história de Flatow e outros milhares de histórias semelhantes, a NRA tem conseguido impedir, durante décadas, a criação de um registro nacional de armas. Se um regime fascista antissemita chegar ao poder nos Estados Unidos, terá de identificar os judeus portadores de armas usando seus próprios bancos de dados.”, como destaca Eli Pariser no seu livro “O filtro Invisível: O que a internet está escondendo de você”, esse exemplo pode dar a dimensão do absurdo de argumento que as redes sociais constroem.
Eu adoro a percepção de que as redes sociais servem de empoderamento dos menos favorecidos, ela segue a linha da ingênua galinha que acreditava ser amiga da raposa, coitada já morreu, de forma trágica e esperançosa entre uma dentada e outra da “amiga”.
Eu vivo nessas linhas a permanente certeza de que “Deus inspirou o homem e ele criou a internet, e o diabo por inveja fez nascer as redes sociais.”
Eu tenho certeza, e o tempo é minha testemunha que os discursos de ódio não são uma criação das redes sociais, elas apenas catalisaram ao dar voz e imagem aos ignóbeis, e que em tempos de economia de atenção são ampliadas pelos algoritmos, fazendo urrar milhares de bestas adormecidas no silêncio, que precisavam de uma mera fagulha pra despertar.
Basta algumas “curtidas”, comentários de apoio, compartilhamentos, e pronto nasce um líder de bairro, de grupo que espelha a ignorância dos demais e que nele se identificam como a voz da minoria, e que em alguns processos chegam a maioria.
Por isso o trabalho das redes sociais na limitação e controle do discurso do ódio mais parece a tarefa de enxugar gelo, pois esbarra na lógica do negócio, onde toda curtida gera melhores posicionamento no feed de notícia dos amigos e todo comentário gera ressonância digital para mais e mais bestas que estavam adormecidas.
Protegidos pela propriedade intelectual, muitos algoritmos das redes sociais cristalizam esse absurdo, e logo é na falta dessa transparência que a ignorância encontra seu fermento. Parte da genealogia desse problema em tempos redes sociais está na própria fonte dessas redes.
É essa falsa percepção de empoderamento que estimula e ajuda também, a tornar essas redes sociais viciantes, claro tudo isso alimentado pelas estratégias comercial e um design milimetricamente estudado para tornar seu uso absolutamente viciante.
Afinal com o tempo a segmentação passou a ser o ingrediente maior na estratégia delas para se ajustarem aos diversos gostos, hábitos e faixas de idade
Lutamos para fazer parte de grupos e nos sujeitamos as regras desses grupos, a vida em sociedade é um exemplo disso por isso precisamos de normas jurídicas, para regrar essas inúmeras relações, afinal como os valores culturais e interpretativos são dotados de um conjunto ideológico experimental significativo, precisamos o tempo todo de ajustes, que caminham com o evoluir das relações econômicas e sociais, e logo o Direito vive em constante e nem sempre atual movimento.
As redes sociais estabelecem uma relação de consumo, onde os aplicativos nos fornecem ferramental para divulgarmos nosso conteúdo e interagirmos e recebermos conteúdo de outros, em troca recebem nossos dados e o nosso tempo.
Com nossos dados calibram sua publicidade para melhorar o resultado dos seus anunciantes, e quanto maior o tempo mais bombardeados por seus anúncios, assim remuneram seus serviços, onde o produto somos nós.
Por sua vez o algoritmo ao perceber os conteúdos não curtidos por você, não comentados e não compartilhados, vai tirando os mesmos da sua linha de tempo, afinal a radicalização do discurso e dos perfis gera um distanciamento virtual que em muitas das vezes muda do plano virtual para o físico e assim a intolerância vai sendo alimentada.
Onde as discussões não se aprofundam e onde procuramos as notícias, e o algoritmo encontra, que reforçam a nossa forma de ver o mundo, pois assim funciona cada dia mais as redes sociais, onde sempre encontramos quem dá vazão e ressonância para as nossas ideias.
Se não encontramos essas pessoas, mudamos de rede social, vamos para aquelas onde raramente ocorre uma discussão como o Instagran onde a preponderância de fotos lindas e maravilhosas dão muito mais curtidas, alimentando o nosso sentimento de pertencimento.
Nunca tivemos tanta informação e nunca a ignorância desfilou tão solta e reluzente aos olhos de incultos, maldosos e em uma parcela de inocentes. E é evidente também que nesse instante de transformação social, onde muitos não encontram mais espaço nesse novo mercado de trabalho que se desenha, levando os mesmo a serem massas de manobra das mais despudoradas teorias da conspiração, onde loucura pouca é bobagem.
Logo passamos a ser viciados em mentiras que nos projetam em nosso grupo, na bolha que vivemos, o filtro deixa de estar preocupado com a construção da verdade e vira prisioneiro da narrativa que fortalece os extremos em um hábito viciante.
Os algoritmos operam para detecção do perfil psíquico, social, econômico, político, enfim, a detecção da forma mentis do usuário, com publicidades que cada dia mais ficam personalizadas para o nosso gosto e necessidade, tudo com o propósito de fazer o match point do marketing digital, a chamada “conversão”.
Para isso vasculham nosso histórico de buscas e curtidas, parametrizam o nosso tempo em cada conteúdo, tudo milimetricamente estudado pelos senhores de nossas escolhas, “os algoritmos”.
Os celulares são de fato a nova nicotina, na fila do banco, na espera do consultório, somos por designs cada dia mais responsivos, embriagados de novas doses viciantes, que nos transformam em prisioneiros de suas telas.
Nosso tempo é o produto, e a ignorância dos que se sentem empoderados o maior aliado desses novos tempos. Em recente artigo, que tratava da moral seletiva dos adoradores de ditadores, seja de direita ou de esquerda, o historiador Leandro Karnal da destaque a essa moral por conveniência: “tenho horror a ditaduras, sejam revestidas do rótulo de esquerda ou de direita. Impera, nos dois campos, uma moral seletiva. Ditador sanguinário e insuportável é o outro, do polo oposto. Quando o governo autoritário é do grupo que eu milito, começam as relativizações.
Tenho a experiência há décadas. Ataco a violência da ditadura chilena sob Pinochet. Meus alunos se emocionam, aplaudem, concordam com olhares e sabem que eu estou ao lado deles. Faço reflexões duras sobre ações criminosas como a Operação Condor que reuniu bandidos a serviço do Estado no Cone Sul e mesmo efeito: sou o herói do dia, o bom professor, o pensador claro e crítico. Ao final da aula, analisando os horrores das ditaduras conservadoras, de Rafael Trujillo a Alfredo Stroessner, viro o historiador bom e exato. Alunos chegam até minha mesa e pedem mais bibliografia e indicações de nomes para pesquisa. Fico feliz: jovens são sensíveis à violação dos direitos humanos, abominam tribunais de exceção e condenam a tortura.
Avançamos o semestre. Chega a hora de pensar o governo monocrático da Cuba de Fidel ou as limitações aos direitos de expressão na Nicarágua de Daniel Ortega. Pronto! Há protestos: “Mas eles acabaram com o analfabetismo! Houve distribuição de terras! Há pressão dos EUA nos bloqueios e há sabotagem contra esses governos”. Aprendi cedo que existem malvados favoritos. A moral é relativizada por conquistas sociais (algumas muito reais como o salto de alfabetização em Cuba) e as ações a favor de alguma distribuição de renda. Assim, como a polícia de Nicolau II era violenta e torturava metodicamente na Rússia, a repressão sob Lênin ou Stálin é menos ruim porque seria apenas defesa contra os inimigos russos brancos ou agentes imperialistas. O mesmo do outro lado: Pinochet matou, mas modernizou o país! “Ética de Bolsa de Valores”, eu penso.
Se eu retirar o verniz ideológico de gente de extrema direita e de extrema esquerda, posso identificar fatores comuns: violência é uma defesa contra um inimigo externo (comunistas ou agentes do imperialismo), estamos a serviço dos verdadeiros interesses do povo (o povo visto como conservador e cristão ou o povo visto como idealização de camponeses e operários), as conquistas justificam alguma violência para combater os resistentes e, enfim, é uma guerra e, se não tivéssemos atacado o inimigo, ele teria nos atacado. Nada novo: Maquiavel na veia, clássico e prático.
Causa-me espanto como historiador: os jovens que desfilavam em Paris criticando tudo que viviam elegiam a China de Mao (e da Revolução Cultural) como ideal. Bem, se Paris fosse governada por Mao, o movimento de 1968 teria sido eliminado na primeira reunião em Nanterre.
Eu já imagino as reações. Identifico duas tradicionais: 1) Leandro: ao atacar ditaduras de esquerda e de direita, você mostra que está “sobre o muro”; 2) ditaduras como a chinesa executaram dezenas de milhões de pessoas de forma direta e indireta, isso é muito maior do que a ditadura civilmilitar no Brasil (1964-1985).
Nunca fui neutro. Tenho valores muito claros. A vida não pode ser elemento negociável na obtenção de valores políticos ou mesmo de desenvolvimento. Sim, a China matou mais do que a ditadura em Santo Domingo por motivos óbvios, inclusive. Porém, um assassino assume o conceito quando mata uma única pessoa. Quando elimina cem, continua sendo assassino. Sim, genocídio é mais grave do que mortes aleatórias. Os nazistas mataram quase seis milhões de judeus. Os turcos provocaram o desaparecimento de 1,5 milhão de armênios. Stálin tem nas costas mais de 20 milhões de mortos. Eu não convidaria nenhum daqueles governantes para um fim de semana comigo… Sou um humanista e defensor intransigente dos direitos humanos.
Valorizo governantes que conservam o Estado Democrático de Direito. Acho uma conservadora como Angela Merkel e uma mulher ligada à esquerda como Michelle Bachelet admiráveis em vários sentidos. Perseguiram objetivos distintos, por vias quase opostas, e ambas defenderam liberdade de expressão, habeas corpus, pluripartidarismo e direitos humanos. Posso negociar reforma agrária e seus mecanismos, cotas universitárias e outras questões. Não posso tergiversar sobre tortura, quebras constitucionais e existência de polícia secreta. Como de hábito, em nome “da pátria”, “das tradições cristãs” ou “do risco comunista”, eu revisto de um verniz positivo o que é, apenas, a odiosa vontade de controle e de poder. Não existe causa boa para o assassinato. Nunca aceitarei ditaduras, independentemente dos eufemismos que esquerda e direita usarem para caracterizar um regime de força.”
As redes viraram isso, apaixonados por homens que homenageiam torturadores, só me fazem perguntar qual o seu valor humano? Qual a importância da vida do outro que pensa diferente de você tem?