PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO E TESTAMENTO DIGITAL

O mundo virtual constrói uma série de novos patrimônios, dentro da classificação de ativos intangíveis.

Criptoativos, milhas, fotos, declarações, publicações, cartas de jogos virtuais, todos novos ativos que antes não podiam ser quantificados, e hoje podem.

Afinal sabidamente, a cada dia produzimos ao longo de nossa história de vida, relatos, fotos e depoimentos registrados diariamente em meios digitais nas nossas inúmeras redes sociais, e ao mesmo tempo é público que as diversas plataformas têm regras diferentes sobre o que acontece com as contas de pessoas que morreram.

Se tomarmos o Twitter, como referência, teremos como única opção a desativação da conta. Já no Instagram e Facebook, será possível tanto solicitar a remoção da conta quanto transformá-la em um memorial, sendo que no do Facebook, ainda é permitido identificar uma pessoa para que a mesma possa gerenciar a conta quando do seu falecimento, ou seja seria um “testamento” de quem seria o seu herdeiro digital.

No mesmo Facebook, possível colocar a expressão “Em memória de” que fica exibida no topo, e dessa forma os amigos poderão compartilhar registros e recordações na linha do tempo da pessoa falecida.

Já o Google, que lá atrás permitiu o registro de desindexação de busca, em forçoso reconhecimento ao direito do esquecimento, é possível que seu usuário informe, quem teria acesso às suas informações depois de sua morte.

O fato é que por mais que o homem tente driblar a morte, ela é de longe a nossa grande certeza, e logo o Direito e suas positivações, tratou de prever a herança em plena Constituição, onde encontramos no Ar. 5°, XXX “ é garantido o direito de herança, logo assim a herança é um direito fundamental.

Por mais que a vida seja finita, ao menos no plano material, encontramos diversas pessoas que pouco ou nada trabalham com essa certeza. Por isso a convicção da sua finitude produz inúmeras consequências, materiais e patrimoniais pelo seu não planejamento.

E assim, com todos os nosso registros digitalizados, passou a ser infinito o aumento do patrimônio das pessoas por seus ativos intangíveis visto ser esses os bens que adquirem a cada dia, maior valor, muitos deles com muita dificuldade de serem quantificados, como perfis de redes sociais, e-mails, aplicativos de trocas de mensagens e outros, que permanecem salvos e sem destino após seu falecimento, passando a integrar o todo unitário da herança, daí receber o nome de herança digital.

Como se sabe os bens digitais podem ser exclusivamente patrimoniais ou existenciais, ou ainda, possuírem natureza dupla. Quando decorrerem de relações comerciais, como por exemplo, em perfis comerciais, de pessoas públicas, celebridades, dos conhecidos influenciadores digitais e youtubers ou apenas tratarem de um perfil pessoal, de uma pessoa anônima que compartilhava na rede peculiaridades de sua vida. Além de poderem se apresentar como um misto dos dois tipos, quando o perfil serve para divulgar trabalhos e fatos pessoais da vida.

Logo paira o desafio, como realizar a transmissão de tais bens aos herdeiros, considerando ainda que estamos diante de dados privados.

A herança alcança a privacidade? A memória digital faz parte da privacidade? Teria o falecido direito a defesa da privacidade? Seu passado eternizado por suas memórias digitais, que nunca foram públicas, pode ser dividido em um processo de inventário?

Como fica a privacidade dos terceiros com quem o de cujus trocou mensagens, fotos e outros dados privados? Sim pois muitas das mensagens trocadas, não se trata apenas da privacidade do de cujus mas dos terceiros envolvidos em tais diálogos.

O Código Civil brasileiro trata assim esse direito: “Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

Logo o primeiro e maior desafio será o de registrar o corte entre a herança, a privacidade do de cujus e a privacidade de terceiros. Pense por exemplo em algum artista cuja memória digital serviria para uma biografia? Livro esse que seria contado considerando as intimidades reveladas na herança digital (fotos guardadas no computador, cartas de amor, mensagens enviadas por e-mails etc).

Como se sabe, vários são os famosos que tiveram um aumento exponencial de seguidores em seus perfis após o seu falecimento, o que proporciona pela revelação desses segredos em muitos casos, um aumento de seguidores e visitantes da página, buscando mais e mais informações sobre esse artista, ou adquirindo seus produtos, sejam eles livro, músicas, vídeos, depoimentos inéditos. Imagine no site de Michael Jackson, se fosse possível acessar suas comunicações. Musicas ainda não terminadas e gravadas em meios digitais. A privacidade de terceiros poderia prejudicar a transmissibilidade dos bens digitais aos seus herdeiros?

A declaração do de cujus em vida sobre o herdeiro da sua rede social, instrumento previsto em algumas redes sociais como o Facebook, pode ser entendida como testamento? Ou sua rede social deve em inventário ser reconhecida como patrimônio intangível?

O Direito tratou também em nosso Código Civil de estabelecer essa proteção, independentemente do meio em que tais registros se encontrem: Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Sendo assim é fundamental termos a avaliação desse bem, o que o Direito Contábil já regrou, porém a não definição em testamento certamente pode ser objeto para muita discussão, seja pelo seu valor financeiro no caso de personalidades públicas ou afetivo no caso das demais pessoas, o que não retira a possibilidade da quantificação valorativa entre os herdeiros e até a possibilidade de acordo.

Nesse momento a legislação brasileira não possui nenhum regramento específico sobre esses casos, nem sobre a transmissibilidade automática ou como um bem compartilhado a todos os herdeiros no caso de existir mais de um.

Pode então o usuário dessas redes negar o direito a essa herança, como forma de resguardar a sua intimidade para o todo e sempre?

Além disso, a família do falecido pode ter o intuito de preservar seu nome, sua história, seus feitos, sua arte, ou utilizar o perfil para alguma instituição criada em nome daquele que faleceu, objetivando transformar o perfil em um memorial em homenagem ao ente querido. Pode solicitar à plataforma o acesso a determinado perfil, possibilitando sua continuidade atentando-se, obviamente, aos termos de uso como declaram muitos doutrinadores?

É de se lembrar que a testamentária é a manifestação de última vontade, visto que por meio de testamento poderia ter deixado todas as formas de encontrar, movimentar, excluir ou agregar o patrimônio digital, por meio de informar onde se encontra os bens, assim como suas senhas, e qual seria a obrigação da rede social? Guardar esses dados enquanto ocorre o inventário?

O aceite aos termos de uso e privacidade da rede social, bem como sua política de proteção de dados pode preponderar sobre o direito de herança desse bem digital? A Lei Geral de proteção dos Dados protege esses dados, por sua natureza sensível?

Logo o que se evidencia, é que é preciso manter as informações das pessoas seguras, protegidas e particulares, antes e depois da sua morte até que se defina melhor o destino delas.

Ficou famoso o caso publicado pela revista Scienc, do estudante universitário e ativista social Nahian Al Muktadir, que lutava contra um câncer.

Ao longo do seu tratamento, Al Muktadir compartilhou ativamente sua experiência diária de luta contra o câncer no Facebook, em diferentes formas de compartilhamento (na sua página, em grupos, etc.)…. e logo após a morte do rapaz, familiares e amigos queriam publicar todos os seus status no Facebook em um livro, mas não conseguiram porque muito desse conteúdo se tornou inacessível.

Dessa maneira a família teve que brigar pelo legado digital de Nahian”, disse Hussain, para exercer esse direito.

Afinal esses dados, depositados nas plataformas digitais, com regras próprias para os usuários e distintas entre si, pertencem as plataformas ou ao usuário e logo aos seus herdeiros? São informações transferíveis pelo puro e simples direito de herança, mesmo quando envolva terceiros?

Tente imaginar nos registros que por realidade aumentada e por realidade virtual poderão estender e dar vida a essas memórias?

Realidade aumentada, realidade virtual, Inteligência Artificial e data mind dessas pessoas podem reconstruir memórias e diálogos? Quem pode autorizar isso? A criação desses avatares passa pelo direito de herança?

Logo surge uma indagação, é preciso colocar em testamento o Direito a reproduzir suas memórias, e criara um avatar com seus dados em realidade virtual e realidade aumentada?

Como poderão ser eternizadas essas memórias e quais os limites dessa nova construção digital?

É infinito o aumento do patrimônio das pessoas por seus ativos intangíveis visto ser esses os bens que adquirem a cada dia, maior valor, muitos deles com muita dificuldade de serem quantificados, como perfis de redes sociais, e-mails, aplicativos de trocas de mensagens e outros, que permanecem salvos e sem destino após seu falecimento, passando a integrar o todo unitário da herança, daí receber o nome de herança digital.

Pode então o usuário dessas redes negar o direito a essa herança, como forma de resguardar a sua intimidade para o todo e sempre?

São todos novos e empolgantes desafios para discutirmos neste mundo cada vez mais diferente.

Porém ainda que novos, é importante deixar claro, que todo conteúdo de imagens, textos, curtidas, compartilhamentos, fazem parte da herança digital, e que não importa o meio em que os mesmos foram produzidos, eles pertencem ao titular do direito, e por decorrência aos seus herdeiros.

Ë preciso dar um formato legal a essa transmissibilidade, e regrar até onde vai a propriedade das memórias digitais e até onde vai a privacidade de terceiros envolvidos. O patrimônio virtual construído por ações nas redes sociais precisa ter limites de segurança jurídica.

Ainda que o Código Civil, em seu art.6°, diga que a existência da pessoa natural termine com a morte, reforçamos que a proteção da honra, da imagem, e de todos os demais direitos continua sendo dever do Estado, o que se depreende da leitura do art 12, caput, que trata da tutela póstuma dos direitos da personalidade, obrigando os herdeiros a defesa dessas prerrogativas humanas. Sim, é dever dos herdeiros zelar pela honra do falecido, o que implica dar privacidade a muitas dessas informações.

Logo a gerência e a autodeterminação, bem como o controle desse conteúdo mantido pelas plataformas digitais é fundamental.

Não se trata apenas das memórias, mas considere as milhas nos programas de fidelidades, criptoativos, uma biblioteca digital adquirida em livros, músicas e filmes, cartas de um jogo virtual, todos ativos digitais possíveis de serem avaliados, e que para tanto precisam ser mensurados no inventários se não foram testados.

Portanto precisamos avançar no regramento para que essas plataformas digitais reconheçam o direito de deixar testado, esses ativos.

E para as plataformas que entendem seu contrato como contrato de adesão e logo não fazem previsão a essa transmissibilidade de direito hereditário? Para essas estaríamos diante da aplicabilidade do artigo

Art. 51 do CDC “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;….

….

§ 1ºPresume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:

I- ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;

II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;

A matéria exige uma nova construção regulamentar, e muito já está previsto em alguns projetos de lei, mas isso já seria assunto para um outro artigo.

Até fique atento as regras de cada plataforma que tratam da herança virtual.

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