O aperfeiçoamento regulatório a micromobilidade é fundamental para o planejamento das nossas cidades.
A volta dos patinetes compartilhados às ruas das nossas cidades já foi anunciada diversas vezes desde a quebra da maior das operadoras durante a pandemia. Sucessivos anúncios e adiantamentos espelham exatamente o tamanho do desafio regulatório e comercial de se colocar novamente de pé essa importante alternativa de micromobilidade urbana.
Alguns modelos já existentes em algumas cidades do mundo, podem e devem servir de referência para o retorno de um serviço necessário, para muitas das nossas cidades e que pode ao mesmo tempo, ser revigorante em novos modelos econômicos que exigem o redesenho da forma de se locomover e de trabalhar. O aperfeiçoamento da micromobilidade por patinetes e bikes, vai ao encontro de devolver as nossas centenas e por vezes milhares, de horas que perdemos dentro dos nossos carros em meio a congestionamentos sem fim e sem horário pra começar ou acabar.
Em Madrid por exemplo a municipalidade abriu para concorrência a exploração do serviço de patinetes elétricos, limitando as autorizações inicialmente em 6.000, o que já estabelece algumas referências regulatórias: 1) O serviço precisa sim ser autorizado pois necessita do controle da municipalidade; 2) O serviço precisa trabalhar com um número mínimo de patinetes (o tamanho da frota), afinal a experiência de cidades como São Paulo, com milhares deles jogados por nossas calçadas, pode dar a dimensão da importância de se estabelecer um número como ponto de partida, e claro que o mesmo pode ser ajustado de acordo com a experiência; 3) É preciso limitar o número de operadoras que precisam oferecer os requisitos mínimos (como seguro para o usuário ou terceiros que podem ser vítimas de acidentes), um limite que não desanime o investidor e que ao mesmo tempo oferte garantias da prestação com qualidade do serviço; 4) O processo licitatório pode e deve estabelecer a necessidade do serviço cobrir determinadas áreas da cidade, evitando assim serviços ofertados de forma discriminatória para determinados bairros em detrimento de outros menos lucrativos; 5) As áreas ao serem divididas devem ser compartilhadas por mais de um operador, para que a concorrência entre elas permita a construção de um referencial de prestação de serviço. Essas são apenas algumas das premissas como ponto de partida para regulação municipal.
Um serviço desordenado, por experiência pode levar a precariedade do serviço e consequente desestímulo ao seu uso, por isso um sandbox regulatório será sempre útil para a implementação de novas culturas.
O foco deve ser nas cidades em que seja primordial os deslocamentos diários curtos, de cerca de até 7 quilômetros de distância.
A definição de pontos de estacionamento exclusivo para esses patinetes (e bikes também) é fundamental para evitar acidentes, logo a fiscalização desse serviço pode ser facilitada pelo próprio aplicativo que indica o estacionamento mais próximo do destino do usuário, isso vai seguramente ofertar uma nova oportunidade de negócio para condomínios, casas e estabelecimentos comerciais que disponibilizarem o seu espaço para estacionamento e recarga dos mesmos.
Lembro que antigamente, os patinetes eram alvos de depredação e roubo, além de ficarem espalhados por uma área muito grande, o que encarecia demais a operação. Com uma nova tecnologia já disponível, o usuário só pode devolver ou alugar os patinetes em áreas predeterminadas, isso vai acabar com aqueles milhares de patinetes jogadas indevidamente nas calçadas.
O Direito a mobilidade, é antes de mais nada um Direito à saúde, e é óbvio que o trânsito nas médias e grandes cidades, além de piorar as condições do ar contribui para milhares de horas que todos nós ficamos presos dentro de carros nas cidades do mundo. É um tempo jogado fora que nunca recuperamos. Por isso se viu com bons olhos quando em março de 2020 a cidade de Londres tentando melhorar a mobilidade dos seus trabalhadores em seu sistema nacional de saúde, fazendo uma proposta muito interessante para eles: emprestar-lhes bicicletas elétricas. Se considerarmos a dificuldade de se andar de carro em Londres, pode-se perceber a importância da iniciativa, afinal andar de bicicleta elétrica em muitas cidades britânicas e mundo afora é significativamente mais rápido do que fazê-lo de carro, e que, além disso, quanto mais pessoas optarem por essa opção, mais mobilidade como um todo melhora, ou seja uma ação na micromobilidade produz resultados fantásticos. Paris pode ser hoje uma das maiores referências, produzindo o case interessante pelos acertos e erros.
Nossas cidades foram construídas colocando o carro na preferência dos espaços, e logo as obras de infraestrutura quase sempre são pensadas em onde e como colocarmos mais carros, como resultados as cidades a cada dia, sistematicamente envenenam seus habitantes com mais e mais poluição, e com mais e mais perda de qualidade de vida nas milhares de horas que passamos trancados em veículos em um tempo pouco ou quase nada produtivo.
A livre iniciativa sem o mínimo de controle é selvageria, e com controle em demasia é a morte do negócio. É preciso encontrar um meio termo que produza como resultado um desenvolvimento saudável para as pessoas e para o negócio.
Afinal quantos anos da sua vida o trânsito poder furtar?
Logo, as soluções logísticas de longo prazo como o transporte coletivo (ônibus, trens e metrô), acabam dando espaço para soluções de curto prazo e assim nossos deslocamentos ganham alternativas, como carros compartilhados, patinetes e bikes elétricas.
Utilizando Paris como referência, hoje das viagens realizadas cotidianamente na região metropolitana parisiense, 60% são inferiores a 5 quilômetros, essa distância pode ser percorrida em 20 minutos de patinete ou de bike.
Não existe solução isolada, ela passa necessariamente pela união da sociedade civil e de todas as esferas de entes governamentais, seja pela modelagem legal no direito urbanístico ou em incentivos fiscais por meios menos poluentes. Vias e imóveis precisam ser ajustados para estimular esse modal não poluente de duas rodas.
Antes que um leitor apressado entenda que esse é um artigo comparativo entre patinetes elétricos e carro, queria avisar que não, pois a comparação entre os dois é absurda, mas é fundamental entender que na regulação da micromobilidade das nossas cidades os nossos legisladores precisam entender a complementariedade dos diversos meios de mobilidade e a necessidade da convivência harmônica e democrática entre eles, e para tanto é preciso reduzir os privilégios seculares dos nossos automóveis sobre os outros meios de locomoção.
A história da economia é e sempre será a dos meios e grupos dominantes, logo sem o interesse público preponderante sobre a lógica corporativa, nossas cidades se transformam em verdadeiras selvas de pedra, onde os carros ganham o espaço das pessoas, e onde a qualidade de vida vira um discurso que não ganha espaço. Perdendo a corrida pela lógica da indústria automobilística e seu forte lobby.
As recentes experiências de bikes e patinetes compartilhados precisam ser repensadas, vista como caminho obrigatório e como oportunidade de negócio para milhares de pessoas, tanto na exploração como na melhoria da infraestrutura, afinal qual centro comercial não gostaria de ser um posto de estacionamento e abastecimento?
(Artigo publicado no site www.jusbrasil.com.br, em 20 de Outubro de 2022).