Por qual motivo, um objeto tão minúsculo tem afetado a produção de diversos setores da economia, de celulares, aos automóveis, de tablets a geladeiras.
Nesse momento você certamente já deve ter lido ou ouvido inúmeras notícias que falam sobre a escassez global de chips e que o torna responsável por problemas na produção de todos os tipos de produtos, desde smartphones e outros produtos eletrônicos de consumo, até automóveis.
Em alguns lugares esse problema vem sendo chamado de chipaggedon (o Armagedon do Chip), na verdade, o resultado de uma conjunção de eventos: por um lado, é claro, a pandemia: os confinamentos que países como a China aplicaram na época causaram o fechamento de todas as suas fábricas, incluindo semicondutores, em um momento em que, além disso, a demanda por produtos eletrônicos de consumo disparou.
Para melhor conceituar, os semicondutores, também conhecidos como circuitos integrados ou chips, são pequenos dispositivos eletrônicos, baseados principalmente em silício ou germânio, que permitem quase todas as atividades industriais, desde o funcionamento de smartphones e computadores pessoais até os sofisticados sistemas de defesa dos exércitos modernos. Logo também são elementos essenciais de tecnologias emergentes como 5G, computação quântica, Inteligência Artificial ou sistemas de condução autônoma. Eles consistem em bilhões de componentes com propriedades únicas que permitem que os dados sejam armazenados, movidos e processados através da corrente elétrica.
Só lembrando, em 1965, o co-fundador da Intel Gordon Moore promulgou a famosa lei que leva seu nome e acompanhou a indústria por décadas: o número de transistores que podem ser inseridos em um chip dobrará a cada 18 meses. Neste momento, os fabricantes mais avançados do setor, como Intel, Samsung e TSMC, trabalham em nódulos abaixo de 10 nanômetros (nm). Cada redução no tamanho do nó é considerada um passo para uma nova geração de dispositivos tecnológicos por causa das novas funcionalidades que são capazes de integrar. Empresas como a taiwanesa TSMChan anunciaram que até o final deste ano colocarão suas primeiras fábricas de 3nm em operação.
A pandemia acelerou o processo de transformação digital, ampliando aceleradamente a necessidade de novos e melhores dispositivos, que consomem ainda mais chips.
E em meio a explosão do consumo desses itens, em quase todas as cadeias de manufatura, acabam ocorrendo novas surpresas, com problemas inimagináveis.
Veja o caso reportado em uma matéria publicada no The New York Times e traduzida e republicada no Estadão, relatando o embate entre produtores de chips e produtores de arroz em Taiwan, tudo em razão de uma seca que se abateu sobre a ilha justamente nesse momento.
Para quem não sabe, os fabricantes de chips usam muita água para lavar suas fábricas e pastilhas de silício, que são a base dos chips. E com os suprimentos de semicondutores no mundo inteiro já pressionados pelo aumento da demanda, a incerteza com o fornecimento de água em Taiwan não deve diminuir as preocupações quanto a dependência do mundo da tecnologia de uma indústria de chips específica: a Taiwan Semicondutor Manufacturing Co. (TSMC), justamente a maior produtora do mundo.
Nesse momento mais de 90% da capacidade de manufatura do mundo no campo dos chips mais avançados (apenas dos mais avançados) estão em Taiwan, especificamente na TSMC, que produz matéria-prima para Apple, Intel e outras grandes marcas. Na semana passada, a companhia anunciou que vai investir US$ 100 bilhões nos próximos três anos no aumento da capacidade, o que vai fortalecer ainda mais sua presença já dominante no mercado.
Vivendo uma seca o país tenta manter fornecimento de água para a produção de semicondutores, enquanto reduz fluxo para irrigação de arrozais
Nos últimos meses, o governo usou aviões e queimou substâncias químicas para produzir nuvens sobre os reservatórios, chegando a criar uma usina de dessalinização de água do mar em Hsinchu, onde está a sede da TSMC, e construiu um canal conectando a cidade com o norte mais chuvoso. Ordenou às empresas para reduzirem o uso de água.
A modesta plantação de Chuang Cheng-deng está a uma pequena distância do centro nervoso da indústria de chips de computadores de Taiwan, que alimenta uma grande parte dos iPhones do mundo e outros aparelhos. Neste ano, Chuang vem pagando o preço pela importância econômica dos seus vizinhos de alta tecnologia. Por causa da seca e a luta para poupar água para residências e fábricas, Taiwan cortou a água para a irrigação de dezenas de milhares de hectares de terras de cultivo de arroz. Para que não fiquem desassistidos as autoridades estão indenizando os agricultores pela renda perdida.
O problema expõe enormes desafios envolvidos na manutenção do setor de semicondutores da ilha, que é um centro cada vez mais indispensável na cadeia global de fornecimento de peças para smartphones, carros e outros artigos da vida moderna.
A região Sudoeste do país é um centro agrícola e também um centro industrial. As fábricas mais avançadas de chips estão na cidade de Tainan, ao sul de Taiwan.
Com as fábricas de semicondutores paradas, encontramos outro fenômeno: durante o confinamento, muitos usuários perceberam a necessidade de modernizar suas infraestruturas domésticas, desde seus computadores até seus roteadores, webcams, tablets e muitos outros dispositivos, bem como a incapacidade de compartilhar dispositivos quando, em casa, vários usuários precisavam usá-los ao mesmo tempo, o que era muito diferente antes da pandemia, onde o uso permitia o compartilhamento dos equipamentos.
São mais e melhores equipamentos, mais sofisticados e logo com um maior número de chips em seus circuitos integrados.
Para se ter uma ideia da necessidade veja o gráfico abaixo com o número de dispositivos:

A crescente dependência de nossos dispositivos eletrônicos para cada vez mais tarefas, do trabalho ao estúdio ao entretenimento, gerou um aumento na demanda que esgotou os armazéns de muitos produtores.
Por outro lado, nem todas as empresas que precisavam estocar reservas de chips para garantir a manutenção de suas cadeias produtivas conseguiram fazê-lo, levando algumas, especialmente aquelas que produzem mais unidades e trabalham com cadeias em tempo real como Ford e Toyota, a serem forçadas a parar suas fábricas e enviar trabalhadores para casa.
Veja abaixo a participação crescente dos chips nos automóveis:

Tradicionalmente, as empresas automobilísticas geralmente não armazenam grandes quantidades de suprimentos, mas recebem os componentes de que precisam no modo herdado e criado pela toyota “just in time”. Outros, como a Apple ou muitas empresas chinesas, fizeram o oposto: acumular grandes quantidades de chips antecipando dificuldades de fornecimento, criando tensões adicionais no mercado.
Mas, além da pandemia, o chipaggedon é, sem dúvida, provocado também por outro fator: uma guerra comercial levantada de forma completamente irresponsável pelo governo Trump, que em dezembro passado, como despedida, colocou seus olhos, assim como empresas como a Huawei e afins como tinha feito antes, em várias outras dezenas de empresas chinesas e também em grandes produtores de componentes eletrônicos como o SMIC, levando a ainda mais dificuldades no fornecimento de seus produtos. Substituir o tipo de componentes que essas empresas fabricam em uma cadeia produtiva de produtos não é fácil, e requer um processo de adaptação e aprovação que leve algum tempo, ou que pode até não ser possível e exigir um redesenho radical.
Como bem destacou Henrique Dans em recente artigo, “No mundo de hoje, as cadeias produtivas são, em muitos casos, intensamente globalizadas. Empreender uma guerra comercial radical e unilateral é uma ação completamente imprudente, que Donald Trump obviamente realizou sem uma análise detalhada das possíveis consequências. O governo Biden, impulsionado principalmente pelas demandas da indústria americana, está trabalhando na elaboração de uma ordem executiva que revisa cadeias de suprimentos críticas que afetam a fabricação das principais empresas do país, principalmente aquelas que exigem elementos como microprocessadores ou baterias de alta capacidade em seus produtos.”
Logo as tensões nos suprimentos de semicondutores devem durar pelo menos até o início do próximo ano, com tudo o que isso implica, levando a preços mais altos de ações para as empresas que os produzem e que sabem com certeza que têm toda a sua produção vendida por um longo tempo.
É evidente, que em um mundo globalizado, há decisões que não podem ser tomadas alegremente como se você fosse o valentão no quintal de uma escola que pode fazer o que quiser, quando quiser, e você tem que pensar sobre as consequências de nossas ações um pouco mais, qualquer semelhança desse caso com a falta de vacinas no Brasil e a pouca vontade dos fornecedores chineses no envio de insumos, não é mera coincidência.
Um relatório da Bain & Company, salientou que o problema é global, conforme já noticiado, e representa US$ 43 bilhões para a indústria como um todo, já nas previsões da Bloomberg esse prejuízo pode ser de US$ 50 bilhões de euros, com quase cerca de 950 mil carros que devem ser deixados de produzir, isso em tempos de pandemia e quando a indústria via uma lenta recuperação.
O setor automobilístico representa 10% da demanda total de chips, em que pese como destacamos na ilustração acima a participação cada vez maior desse componente nos novos bólidos.
Em tempos de economia globalizada os problemas são de todos, e as soluções que servem para alguns países devem ser vistas atentamente por outros, esse é o maior aprendizado da pandemia. Não são tempos para briguentos que querem erguer muros, mas para dirigentes que saibam estabelecer pontes, seja na política ou nos negócios.