OS ADORADORES DE PINÓQUIO

Desde criança adoramos Pinóquio, não por suas mentiras, mas por sua capacidade de superação, pela possibilidade de um boneco que vira gente caminhar em meio a mentiras e ao longo da sua existência descobrir o valor da verdade.

Nos tempos atuais, onde a vontade de empoderar-se diante do nosso grupo social seja ele de bairro ou dos amigos do futebol no WhatsApp faz com que muitos se preocupem mais com a velocidade na divulgação do que na qualidade da distribuição desse conteúdo, sem se importar com a qualidade desse conteúdo, da desatenção de amigos ou de inverdades, tudo em nome do empoderamento, ainda que ele apenas evidencie a minha ignorância e o meu destempero em distribuir inverdades, logo nos tornamos adoradores de mentiras, de mentirosos e propagadores desse conteúdo ficcional.

Já tentou medir quantas mentiras você já recebeu compartilhadas nos seus grupos de WhatsApp e Facebook só nessa semana?

Quantos delírios aquele tio(a) desavisado já compartilhou no grupo da família no último mês? E aquela sua amiga que nunca leu um livro, e agora entende que inteligência artificial é compartilhar o conhecimento dos outros (ou fake news) e assim ela pensa ser genial? A democratização do meio fez surgir ou apenas evidenciar figuras pra lá de caricatas nos nossos grupos, fruto dos novos tempos.

Eventos contemporâneos atualizam esta perplexidade, pois quem diria que em 2020 americanos iam ingerir ou injetar desinfetante após sugestão de seu presidente? Na era dos vídeos de “deep fake”, a história segue confirmando que a credulidade não tem freios e pode custar reputações, sistemas políticos e vidas.

Encarar os fatos, por mais amargos que fossem, era o compromisso que George Orwell demandava de qualquer um que o lesse. A recusa à verdade o incomodava profundamente, como neste fragmento do ensaio Culture and Democracy, de 1941: “Uma das piores coisas da sociedade democrática nos últimos 20 anos é a dificuldade de qualquer conversa ou pensamento franco.”

Passados cerca de 80 anos dos escritos de Orwell, os homens, em que pese todas as possibilidades de se identificar na notícia se é fato ou boato, continuam dando espaço para, como num rastro de pólvora, fazer circular mentiras, não se importando com o resultado delas e nem mesmo se desculpando quando tem conhecimento que era fake, o que não me surpreende, afinal, idiotas não excitam, seguem em frente com a ignorância que é seu traço.

Isso me remete Raymond Aron, filósofo e político francês, que uma vez em uma entrevista “que afirmava ter um único grande arrependimento na vida: não ter guardado certa distância da realidade.” O que me permite concluir que a distância das notícias pode ser um bom tempero para identificar a verdade.

A verdade, não pode ser uma mercadoria em balcão, ela é a base das nossas relações. Como construir e aprofundar relações pessoais com grupos sem o compromisso com a verdade?

O amor pelas mentiras é filho do desprendimento da relação com o próximo, visto que Fake News são a tentativa da materialização da mentira que gostaríamos que fosse verdade.

Por isso lembro uma recente pesquisa da Avaaz, que aponta que sete em cada dez internautas brasileiros, de um total de cerca de 110 milhões de pessoas, acreditam em ao menos uma notícia falsa a respeito da pandemia de coronavírus, Pinóquio deve se mudar para o Brasil, certo da boa-fé dos brasileiros em acreditar em qualquer lorota.

Pelo mesmo estudo, 6 em cada 10 internautas receberam as fake news pelo WhatsApp, sendo que o Facebook é a segunda plataforma com maior propagação de notícias falsas, com 5 em cada 10 internautas recebendo fake news pela rede social.

A pesquisa também foi realizada nos Estados Unidos e na Itália e aponta que usuários brasileiros acreditam mais nas notícias falsas, logo, somos líderes em acreditar em mentiras. Enquanto ao menos 73% dos brasileiros acreditaram em alguma fake news, 65% dos americanos e 59% dos italianos, acreditam nas mesmas falsas notícias.

A mesma pesquisa apontou que 80% dos entrevistados, gostariam de receber informações corrigidas por verificadores de fatos. No entanto, 57% alegaram não terem visto nenhuma correção ou sinal de alerta sobre conteúdo falso.

É preciso sim fortalecer a liberdade de expressão, mas com efetividade no expurgo imediato de conteúdos falsos, com a punição, ainda que branda das pessoas que compartilham esses delírios e ou maldades. É preciso discutir uma regulação sim, mas deve-se também mas preservando infraestrutura e indivíduos na sua interação.

As plataformas se movem no sentido de dar credibilidade ao conteúdo, e é preciso fazer isso com uma certa velocidade antes da mídia tradicional derreta no calor dos delírios das redes sociais.

Recentemente o Google anunciou novos recursos para a área de notícias do site. Agora, todos os usuários, independentemente do dispositivo que estejam utilizando, podem ver painéis aprimorados de conteúdos produzidos por jornais parceiros antes o serviço estava disponível só para telefones celulares, o que é um avanço para todos que acessam.

Essa parceria com veículo com credibilidade é fundamental na busca da informação, logo os investimentos de cerca de US$ 1 bilhão, através do Google News Showcase, que é um programa de licenciamento que paga a veículos jornalísticos pela curadoria aos produtos de notícias do gigante de buscas, será possível ter acesso a conteúdo com credibilidade.

Iniciativas assim ofertam mais conteúdo, mas pouco adiantam se continuarmos a nos apaixonar por mentirosos com ou sem mandato. Afinal é justamente essa percepção que faz com que as redes sociais aumentem sua vigília na retirada de conteúdos falsos, preocupadas com a sua credibilidade já que passaram a ser o maior canal disseminador de estudos e notícias.

As fake news parecem inaugurar a era da pós verdade, onde muitos se preocupam em procurar conteúdo com o propósito de fortalecer seu ponto de vista, deixando na maioria das vezes a verdade de lado, evidenciando esse comportamento conforme os extremos se enfrentam no teatro dos debates efêmeros das redes sociais.

Na última semana a Amazon anunciou ações legais contra administradores de mais de dez mil grupos do Facebook em todo o mundo, dedicados a coordenar avaliações falsas e manipuladas sobre produtos e serviços, ou seja você está pesquisando sobre um produto, e procura opiniões e avaliações sobre esses produtos sem saber que o depoimento é falso, o que lhe leva a adquirir um serviço sem saber que os consumidores e suas declarações de experiência não são verdadeiros, são em termos atuais, fake!!! Pasme você alguns desses grupos tem mais de 40.000 membros.

O negócio de avaliações falsas na Amazon é, por muito tempo, uma forma de golpe que muitas empresas decidem pagar para poder colocar seus produtos em uma plataforma que pode, em muitos casos, significar uma porcentagem muito interessante de suas vendas.

Durante anos, a Amazon pouco ou nada fez para evitar a falsificação do seu sistema, em que pese afirmar em seu comunicado à imprensa que tem “mais de 12.000 funcionários em todo o mundo dedicados a proteger suas lojas contra fraudes e abusos, incluindo falsas críticas”, mas até permitiu que os vendedores removessem críticas negativas genuínas, permitindo abertamente comentários claramente laudatórios de pessoas que nem sequer são de fato. eles até compraram o produto.

Mas tudo tem um limite, e diante da perspectiva de o sistema de revisão se tornar cada vez mais inútil e sem sentido, a empresa decidiu agir diante de pelo menos as evidências mais claras das chamadas “ações coordenadas não genuínas” orquestradas para alterar o sistema, procedendo judicialmente contra os administradores dos grupos.

Que uma grande empresa como o Facebook obtém o nome do administrador de um grupo no Facebook e procede judicialmente contra ele não deve ser tomada como uma piada: defender-se geralmente requer, além de dores de cabeça e preocupações, algumas despesas significativas, além das evidências de ter à sua frente alguém com acesso ilimitado a recursos judiciais e que pode muito bem estar disposto a procurar casos de referência e apelar para o infinito e além.

Alguém que orquestra um grupo no Facebook para que uma série de usuários se inscrevam para escrever opiniões falsas sobre produtos em troca de dinheiro é, simplesmente e sem paliativos, um com todas as suas cartas, um comportamento flagrantemente criminoso e que merece qualquer tipo de ação judicial, como possivelmente merecido não só pelos administradores, mas todos aqueles que participam desse tipo de esquemas. Dedicar-se a receber dinheiro de empresas em troca de mentir na Amazon sobre a qualidade de seus produtos é participar de um esquema de corrupção que claramente merece punição, assim como muitos outros tipos de ações fraudulentas na web que tradicionalmente se beneficiaram da dificuldade de realizar processos judiciais nessa área.

Como se percebe o uso das redes sociais para com mentiras ludibriar e tirar proveito da ingenuidade e ignorância das pessoas não fica restrito aos políticos, mas na sociedade da desatenção gerar conteúdo falso que beneficie de alguma forma quem o produz não é exclusividade dessa ou daquela outra categoria, mas sim uma velha tradição de se beneficiar de calúnias e maldades, que podem soar como música aos ouvidos dos pobres de espírito.

É nessas redes, que viraram plataforma de comunicação o lugar onde se constroem de um dia para outros novos “mitos” com discurso que unem semelhantes em causas antigas de velhas bandeiras, desatualizadas do contexto mundial, onde muitos se agarram como salvação de suas vidas e do seu país, fazendo que de uma hora pra outra questões que nunca haviam sido vistas como um problema real, ganhem o peso de salvação da lavoura (ficamos no voto impresso como um só exemplo, que tão rápido como apareceu como pleito também desapareceu no momento em que os bots foram postos pra dormir).

Muitos são os motivos que nos levam a entrar em redes sociais, e entre tantos, a vaidade tem seu lugar de destaque, parecendo funcionar feito fermento, catalisando seus efeitos e resultados.

Se não tivéssemos vaidade, o que seria dos filtros e ajustes tecnológicos nas fotos? Tem gente que faz tanto ajuste que é humanamente impossível reconhecer o amigo ou conhecido. Fazemos parte das redes sociais, quase sempre por puro prazer, ainda que para alguns seja uma tortura, e quem disse que não há prazer na dor?

Estimular o ruído de forma incessante, nessa sociedade que parece ter pavor do silêncio, tem virado regra, pois pra esses o barulho é um estímulo. Tudo feito para chamar a atenção, e logo quando todos procuramos chamar a atenção, geramos tanto barulho que ninguém se ouve e ao mesmo tempo acabamos por criar a “sociedade da desatenção” onde fica humanamente impossível prestar atenção em algo.

E logo é cada dia mais comum procurarmos o silêncio e como disse o pesquisador Breton “O silêncio é uma forma de resistência. Somos um espírito que habita um corpo e não o contrário. E só com silêncio acessamos essa fonte espiritual que está em nós. O ruído da pós-verdade não nos deixa sair do fluxo incessante de estímulos, e cada vez nos atolamos mais.”

Mentiras parece ser o prato favorito de alguns, onde a ignorância e a pobreza de espírito são o combustível para espalharmos os delírios desses incendiários de plantão.

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