A União Europeia, de forma esmagadora, votou favorável a resolução sobre o direito dos consumidores de reparar seus dispositivos eletrônicos, por 509 votos favoráveis, 3 contra e 13abstenções, o que é conhecido como “Direito de Reparação”, encerrando uma discussão de muitos anos, e que representa um marco importante que afeta tanto a ideia de fabricação de produtos para que possam ser reparados de forma razoavelmente fácil e a disponibilidade de peças para poder fazê-lo, bem como o período de garantia que seus fabricantes devem oferecer. O que deve provocar uma considerável mudança na logística de assistências técnicas e na remessa de peças.
Tanto lá como em outros lugares do mundo inúmeras organizações, em defesa dos consumidores, pressionam por legislação que obrigue fabricantes a fornecerem manuais e peças para reposição de itens quebrados por preços justos
Hoje em dia, o acesso às assistências técnicas ficou muito mais complicado: nas autorizadas, os reparos são em geral muito caros e demorados, ao passo que as pequenas lojas não têm acesso a peças originais e muitas vezes são legalmente proibidas de mexer em determinados aparelhos.
E assim, o consumidor, então, se vê diante de um aparelho ainda funcional, com algum pequeno defeito, mas cujo conserto sai quase o preço de um novo (na autorizada) ou não é 100% garantido, já que as oficinas de reparo autônomas usam peças alternativas, em geral importadas de países como a China. Por isso, nos Estados Unidos, tem crescido o movimento pela aprovação de uma lei que garanta o direito de reparar eletrônicos.
O Direito a reparação contribui também pela redução do lixo eletrônico, muitas vezes descartado antes do necessário por conta de estratégias dos fabricantes como a obsolescência programada e o preço algo da reparação.
Uma das organizações que pressionam pela aprovação da legislação é a ONG The Repair Association, criada em 2013. Eles se dizem representantes de todos os envolvidos no reparo da tecnologia — dos que consertam coisas por hobby aos técnicos independentes e organizações ambientais. Além de fazerem lobby para modificar a legislação, eles também promovem uma rede de troca de conhecimentos e discussões para alavancar a indústria do reparo. O movimento é inspirado em uma legislação de 2012, aprovada em Massachussets, que trouxe o direito ao conserto aos automóveis, permitindo que mecânicos independentes também tivessem acesso às peças.
Que os dispositivos podem ser facilmente reparados é uma ideia fundamental em inovação, e dificultar isso geralmente é identificado não apenas com interesse em monopolizar a prestação desse serviço, mas também com questões geralmente abusivas, como a obsolescência planejada ou com o problema ambiental que supõe que dispositivos que poderiam continuar a ser usados acabam em um aterro sanitário.
Nesse sentido, tem havido muitas marcas de eletrônicos de consumo que tentaram, ao longo do tempo, dificultar os reparos de seus produtos através de diferentes tipos de táticas, desde instruir o canal a recomendar apenas acessórios de sua própria marca.
O caso da Apple, que por um tempo evoluiu nessa direção até que seu cofundador, Steve Wozniak, declarou-se abertamente a favor do direito à reparação, é especialmente interessante: a empresa tornou-se praticamente um dos inimigos a vencer, levou a administração Biden a lançar uma iniciativa destinada a assegurar aos consumidores esse direito, e finalmente, cedeu à pressão quando descobriu que poderia assumir as modificações derivadas de uma lei que já estava sendo proposta em cada vez mais estados. Finalmente, a marca decidiu não só lançar um programa que facilitaria a reparação de canais independentes diferentes de sua mítica Apple Store, mas também lançar um programa de reparos pelos próprios usuários (“faça você mesmo”, ou DIY) com acesso a componentes e ferramentas a mesmos preços que facilitam seu canal.
Em última análise, na medida em que melhoramos nosso conhecimento nessa área e podemos até considerar melhorias ou alternativas, além de sermos mais eficientes, podendo aplicar princípios de economia circular ou reduzir a geração de resíduos.
O Direito de reparação, é uma questão fundamental que em breve veremos incorporada em toda a legislação do consumidor, tanto nos Estados Unidos quanto na União Europeia. A ideia de que quando um dispositivo quebra, não temos que considerar simplesmente jogá-lo fora e adquirir outro, mas podemos pensar em repará-lo, substituir as peças afetadas ou, simplesmente, abri-lo para tentar entender como ele funciona. Uma parte fundamental para tornar a relação entre os consumidores e a tecnologia que costumam usar mais saudável.
Obvio que junto com essa questão vem a possibilidade de uma venda ainda maior das garantias estendidas, e de inúmeros serviços que estarão atrelados aos nossos caros dispositivos.
Tudo indica que a Apple estará a cada dia mais vendendo dispositivos como se fossem assinaturas, tal como já ocorre com inúmeros fabricantes de automóveis, afinal muitos celulares já custam mais do que carros.
Na forma de um serviço de assinatura vinculado a uma proteção Applecare na forma de seguro, pelo qual um usuário paga mensalmente até o momento em que decide substituir seu terminal por um mais moderno.
Caso uma parcela significativa do mercado decida optar por um modelo de subscrição, estaríamos falando de uma estabilização muito interessante das receitas na demonstração de resultados da empresa, cujo tesouro dependeria de um modelo muito mais previsível, recorrente e sustentado ao longo do tempo.
Lembro que nesse momento, cerca de 15,76%, de todas as receitas da Apple vem de serviços, o que indica uma tendência cada vez maior dos fabricantes na lógica multicanal. Uma ideia, a da “economia do aluguel”, não possuir nada e simplesmente alugá-la, e que sem dúvida, faz parte de uma tendência com muito sentido nos cenários tecnológicos que se movem em alta velocidade. Embora um smartphone possa durar sem muitos problemas vários anos em boas condições de trabalho, a realidade é que há muitos usuários que, por quaisquer razões (do acesso a novos recursos a simplesmente esnobismo) preferem mudá-los assim que um novo modelo é apresentado. Nessas condições, a situação ideal é que todos esses terminais sejam devolvidos à marca em um determinado momento, podendo ser convenientemente reciclados nas melhores condições possíveis, incluindo a recuperação de todos os materiais possíveis.
Cada vez mais empresas, do software à moda ou automotivo, estão tentando escolher, com maior ou menor sucesso, esse tipo de programa para converter produtos em serviços, que configuram um futuro em que, aparentemente, teremos cada vez menos coisas como tal, como uma forma de nos defendermos contra um avanço na tecnologia que torna muitos produtos obsoletos de forma acelerada. Por um lado, uma expansão do consumismo que nos permite liberar muito mais coisas com muito mais frequência. Mas, por outro lado, em determinadas categorias, uma forma de colocar ordem no mercado e facilitar a reciclagem e a transição para uma economia cada vez mais circular, na qual inúmeros componentes serão reincorporados na cadeia de valor de forma mais planejada.
A economia digital é dinâmica e se redesenha de uma forma muito velos, pois sabe da importância dessa adaptação.