Gabriel Garcia Marques em seu livro “Crônica de uma morte anunciada” eternizou uma situação que possui enormes paralelos nos tempos atuais. Desde o surgimento da internet em nossas casas e a possibilidade facilitada e muitas vezes subsidiada de se comprar produtos e contratar serviços pela rede mundial de computadores foi uma declaração sentença de morte para o comércio de rua. Essa afirmação é, de certa maneira, uma forma de simplificar a questão.
É evidente que na história da humanidade e na nossa formação cristã é sempre o hábito atávico de encontrarmos e elegermos demônios, ou você acha que é de graça que eleitores e fiéis elegem mitos e falsos messias? Claro que não, a satanização de pessoas, personagens e situações é a melhor forma de não aprofundarmos no estudo de questões fundamentais, pois depois que elegemos culpados e ungimos um salvador, nosso pobre espírito parece ter encontrado o éden e dane-se a ciência e os números, a nossa fé inabalável nas soluções e respostas fáceis é o melhor lugar para as consciências não dispostas a pensar muito.
Eleger o comércio online como único culpado é por demais simplistas e segue o mesmo modelo.
O fato é que o derretimento do comércio de rua, ainda que tenha na internet seu principal causador, mas existem inúmeros outros atores nessa verdadeira “Crônica de uma morte anunciada”, pois por vezes esquecemos que a história da humanidade também é a busca por novas zonas de conforto, e é por isso que décadas antes surgiram os centros comerciais e shoppings centers, com seus ambientes climatizados, estacionamento fácil e segurança, além de encontrarmos quase tudo em um só lugar.
Claro que o elemento regulatório, sempre ele, serve para o aperfeiçoamento e garantia de um novo modal econômico, pois o Direito sempre será um bom parceiro de uma nova economia dominante.
E logo esses centros comerciais foram brotando em nossas cidades protegidos pela legislação local, ao mesmo tempo, o tradicional comércio de rua foi, ao longo do tempo, sendo edificado em uma confusão e inconveniente legislação local que era tocada de acordo com o apadrinhamento de um ou outro representante parlamentar, e assim nossas ruas e calçadas foram se tornando na maioria dos caso um emaranhado de edificações, exemplo de como não se deve planejar uma cidade.
Lojas e mais lojas sem estacionamento, bicicletários e outros similares que ofertassem mais conforto ao consumidor, tudo seguindo a lógica de uma construção civil de olho em construir mais metros quadrados no menor terreno possível, na lógica econômica de faturar mais e que se dane a comodidade do consumidor.
Logo quando surgem novas alternativas, mais cômodas, confortáveis e dinâmicas o consumidor vai atrás. Se no primeiro momento eram os centros e shoppings hoje é o comércio virtual.
Esse mesmo comércio virtual também se valeu do Direito e da política jurídica para produzir diplomas normativos que adicionam mais facilidades, ou você acha que existe milagre? Todo preço bom na internet quase sempre vem acompanhado por um grande player que se estabeleceu em algum Estado através de uma renúncia fiscal, e assim vende mais barato que o comércio de rua, que claro derrete.
Nesse ano no Brasil, a venda de produtos pela internet já ultrapassou as vendas de todos os shoppings e centros comerciais junto, e deve em poucos anos ultrapassar a venda de todo comércio de rua também, mantendo sua velocidade de crescimento.
Pandemia, inflação, e diversos outros fatores, mas algo é claro, todos estamos mais pobres, e todos fomos obrigados a ressignificar nossas aquisições de produtos e serviços, e com isso o comércio de rua tradicional derrete.
O prefeito de Nova York, Eric Adam e o prefeito de São Francisco, London Breed, vem conjuntamente convocando as empresas para que elas e seus funcionários voltem a ocupar o centro das cidades, e certamente o resultado disso será muito pequeno.
Que os prefeitos da cidade estão interessados em preservar a vitalidade econômica de seus centros comerciais e distritos financeiros parece fácil de entender, mas, por outro lado, será difícil para os trabalhadores assimilarem esse retorno, quando por mais de dois anos no caso de muitas empresas nos Estados Unidos, tiveram tempo não só para verificar as vantagens óbvias de não ter que suportar um engarrafamento todas as manhãs, mas também para torná-lo um hábito.
Por mais que o costume tenha nos levado a pensar, por gerações, que nossa maneira de pensar sobre as cidades e nossos hábitos de trabalho nelas eram algo razoável, a realidade é que não é de todo. Reunir trabalhadores em uma área específica para a qual eles têm que fazer uma peregrinação todas as manhãs, com um cronograma fixo que causa todos os tipos de engarrafamentos, para realizar tarefas que, na realidade, eles podem fazer, como vimos há mais de dois anos, de qualquer outro lugar, é algo que não tem justificativa. Argumentar que a razão para voltar a esses hábitos é a recuperação do comércio local, restaurantes, lanchonetes, lavanderias ou empresas que viveram desses trabalhadores é completamente questionável, pois a partir de um raciocínio já falho em seu início.
Nas grandes cidades, há muitos trabalhadores que simplesmente se recusam a voltar à forma como trabalhavam antes da pandemia. Quando você passou mais de dois anos demonstrando que pode trabalhar de forma mais eficiente de casa ou de outro lugar, que você não precisa passar pelo martírio de engarrafamentos, e que você pode comer em casa ou onde quiser sem ter que ir aos restaurantes no centro da cidade ou reaquecer a comida que você tira de casa recheada em um recipiente plástico, a ideia de regredir e voltar ao que você fez antes é simplesmente absurda.
De fato, em cidades com mercados imobiliários tão insanos quanto as de Nova York ou São Francisco, há até uma proporção interessante de trabalhadores que, ao longo da pandemia, tomaram a decisão de se mudar para outras cidades com preços mais razoáveis, e a quem a possibilidade de ter que voltar a trabalhar todos os dias às nove da manhã no centro da cidade parece simplesmente absurdo. Muitos dos trabalhadores que os prefeitos da cidade querem ver de volta em seus centros simplesmente não vivem mais lá, e só consideram viagens isoladas para seus escritórios. Escritórios que, além disso, estão evoluindo rapidamente para se tornarem lugares destinados a uma função muito mais social, e menos para ser lugares onde o trabalhador se senta para trabalhar por horas intermináveis.
Ao mesmo tempo a elevação do câmbio, e a volta da inflação derreteu o poder de compra das classes menos favorecidas e é delas que o comércio vive, ou vamos imaginar que um país de 210 milhões de pessoas vai viver apenas da classe A e B? Não entender a sociedade e a necessidade de gerar empregos e renda para os mais simples é afundar na lógica de um comércio que pode viver cada vez mais para poucos e com poucos atores, e assim existirão mais ex-comerciantes do que comerciantes na ativa.
As lojas que fecham diariamente sob os nossos olhos é apenas um retrato de uma economia concentrada em favores para poucos setores organizados.
Com a pandemia, as tecnologias que nos permitem fazer muitos tipos de trabalho independentes de um lugar geográfico específico não só avançaram muito, mas também seu uso tornou-se extremamente popular. Há outra maneira de trabalhar, e obviamente faz muito mais sentido, e claro o comércio de rua, que esperou de forma pacífica pelas mudanças, derreteu…