Quantas mentiras você já recebeu compartilhadas nos seus grupos de WhatsApp e Facebook só nessa semana?
Quantos delírios aquele tio(a) desavisado já compartilhou no grupo da família no último mês? E aquela sua amiga que nunca leu um livro, e agora entende que inteligência artificial é compartilhar o conhecimento dos outros (ou fake news) e assim ela pensa ser genial?
A democratização do meio fez surgir ou apenas evidenciar figuras pra lá de caricatas nos nossos grupos, fruto dos novos tempos.
Isso me lembra um artigo no jornal Estadão, sobre boatos, com o título: “BOATOS COMO ORWELL PREVIU A ONDA DE FAKE NEWS” de Amanda Mont’Alvão Veloso, psicanalista e jornalista, que cabe aqui como uma luva, e assim transcrevo: “Quando um boletim interrompeu a programação musical da rádio CBS em 1938, para anunciar uma invasão alienígena aos EUA, milhares de pessoas, em pânico, sobrecarregaram o trânsito e as linhas telefônicas na tentativa de fugir. Só que a ameaça, transmitida na véspera do Halloween, não era real. De Nova York, Orson Welles dramatizava o que H. G. Wells tinha imaginado em seu livro A Guerra dos Mundos. A peça radiofônica de Welles, tributária da inventividade da ficção, acabou fazendo um streaming de medos universais. A transmissão tinha conteúdo, embalagem e entonação de jornalismo. Mas não passava de uma encenação para fins de divulgação cultural. O pânico decorrente da audição do programa é até hoje estudado e na época foi objeto de uma pesquisa da Universidade de Princeton. Acredita-se que muitos dos ouvintes alarmados tenham sintonizado na rádio após o início da transmissão. “Todavia, o mais espantoso foi que pouquíssimos ouvintes americanos fizeram algum esforço de verificação”, comenta um George Orwell que ainda não tinha escrito A Revolução dos Bichos e 1984 ao resenhar o livro The Invasion from Mars (A Invasão Marciana), do psicólogo Hadley Cantril. Por mais que o radiojornalismo desfrutasse de grande credibilidade naquele tempo, a chegada de imensos alienígenas aos EUA carecia de certo ceticismo, o que poderia ser resolvido com a consulta a outras fontes. Para Orwell, era de especial interesse que os pesquisadores tivessem encontrado uma conexão entre a infelicidade pessoal e a disposição para aceitar algo inacreditável. Eventos contemporâneos atualizam esta perplexidade, pois quem diria que em 2020 americanos iam ingerir ou injetar desinfetante após sugestão de seu presidente? Na era dos vídeos de “deep fake”, a história segue confirmando que a credulidade não tem freios e pode custar reputações, sistemas políticos e vidas.
A verdade nunca custou tanto, diria Orwell. É o desafio presente em todos os tempos, revitalizado a cada irrupção de falsificações de fatos ou cegueira discursiva. É o tema mais caro ao escritor inglês nascido na Índia, como podemos identificar no livro Sobre a Verdade, recém-lançado pela Companhia das Letras e com tradução de Claudio Alves Marcondes. Trata-se de uma coletânea de trechos extraídos de livros e ensaios escritos nas décadas de 1930 e 40 – dentre eles, Dias na Birmânia, O Caminho para Wigan Pier e A Revolução dos Bichos. Lidos em perspectiva cronológica, os textos arregimentam os pressupostos que permitiriam Orwell enlaçar os séculos 20 e 21 com o assustador 1984 e seu Ministério da Verdade que só manufaturava mentiras.
Encarar os fatos, por mais amargos que fossem, era o compromisso que Orwell demandava de qualquer um que o lesse. A recusa à verdade o incomodava profundamente, como neste fragmento do ensaio Culture and Democracy, de 1941: “Uma das piores coisas da sociedade democrática nos últimos 20 anos é a dificuldade de qualquer conversa ou pensamento franco.”
Passados cerca de 80 anos dos escritos de Orwell, os homens, em que pese todas as possibilidades de se identificar na notícia se é fato ou boato, continuam dando espaço para, como num rastro de pólvora, fazer circular mentiras, não se importando com o resultado delas e nem mesmo se desculpando quando tem conhecimento que era fake, o que não me surpreende, afinal, idiotas não excitam, seguem em frente com a ignorância que é seu traço.
Isso me remete Raymond Aron, filósofo e político francês, que uma vez em uma entrevista “que afirmava ter um único grande arrependimento na vida: não ter guardado certa distância da realidade.” O que me permite concluir que a distância das notícias pode ser um bom tempero para identificar a verdade.
A verdade, não pode ser uma mercadoria em balcão, ela é a base das nossas relações. Como construir e aprofundar relações pessoais com grupos sem o compromisso com a verdade?
A banalização das Fake News é resultado de uma sociedade que privilegia a força no lugar da razão e que no caminho enterra vidas, reputações e oportunidades.
O amor pelas mentiras é filho do desprendimento da relação com o próximo, visto que Fake News são a tentativa da materialização da mentira que gostaríamos que fosse verdade.
Por isso lembro uma recente pesquisa da Avaaz, que aponta que sete em cada dez internautas brasileiros, de um total de cerca de 110 milhões de pessoas, acreditam em ao menos uma notícia falsa a respeito da pandemia de coronavírus, Pinóquio deve se mudar para o Brasil, certo da boa fé dos brasileiros em acreditar em qualquer lorota.
Pelo mesmo estudo, 6 em cada 10 internautas receberam as fake news pelo WhatsApp, sendo que o Facebook é a segunda plataforma com maior propagação de notícias falsas, com 5 em cada 10 internautas recebendo fake news pela rede social.
Curioso é o que alimenta essa fé, que quase sempre está ligada a acreditar em uma cura fácil ao vírus, ou algum estudo que acabe por resultar em se proteger menos, levando o internauta a aumentar suas chances de contágio.
A pesquisa também foi realizada nos Estados Unidos e na Itália e aponta que usuários brasileiros acreditam mais nas notícias falsas, logo, somos líderes em acreditar em mentiras. Enquanto ao menos 73% dos brasileiros acreditaram em alguma fake news, 65% dos americanos e 59% dos italianos, acreditam nas mesmas falsas notícias.
A mesma pesquisa apontou que 80% dos entrevistados, gostariam de receber informações corrigidas por verificadores de fatos. No entanto, 57% alegaram não terem visto nenhuma correção ou sinal de alerta sobre conteúdo falso.
É preciso sim fortalecer a liberdade de expressão, mas com efetividade no expurgo imediato de conteúdos falsos, com a punição, ainda que branda das pessoas que compartilham esses delírios e ou maldades.
A liberdade não pode nunca ser inimiga da verdade, por isso que na semana passada uma carta aberta da Internet Society (ISOC) ao primeiro-ministro do Canadá alertava sobre sérios riscos à internet e às liberdades individuais, embutidos em legislação que se está discutindo no Canadá, porém uma regulamentação inflexível pode também colocar em risco muitos dos valores defendido na internet.
É preciso discutir uma regulação sim, mas deve-se também mas preservando infraestrutura e indivíduos na sua interação.
As plataformas se movem no sentido de dar credibilidade ao conteúdo, e é preciso fazer isso com uma certa velocidade antes da mídia tradicional derreta no calor dos delírios das redes sociais.
Recentemente o Google anunciou novos recursos para a área de notícias do site. Agora, todos os usuários, independentemente do dispositivo que estejam utilizando, podem ver painéis aprimorados de conteúdos produzidos por jornais parceiros antes o serviço estava disponível só para telefones celulares, o que é um avanço para todos que acessam.
Essa parceria com veículo com credibilidade é fundamental na busca da informação, logo os investimentos de cerca de US$ 1 bilhão, através do Google News Showcase, que é um programa de licenciamento que paga a veículos jornalísticos pela curadoria aos produtos de notícias do gigante de buscas, será possível ter acesso a conteúdo com credibilidade.
O recurso já está disponível em alguns países, incluindo Índia, Argentina e Brasil, a maioria dos parceiros é de jornais locais, regionais ou comunitários. Batizado de Destaques no Brasil, um novo recurso permitirá que os veículos incluam links dentro dos painéis de notícias, agregando mais contexto a temas complexos. Os novos recursos chegam em meio a discussões globais sobre como o Google deve pagar por conteúdo jornalístico. Na Austrália, o governo aprovou uma lei sobre o tema, enquanto a União Europeia estuda fazer o mesmo.
Iniciativas assim ofertam mais conteúdo, mas pouco adiantam se continuarmos a nos apaixonar por mentirosos com ou sem mandato. Afinal é justamente essa percepção que faz com que as redes sociais aumentem sua vigília na retirada de conteúdos falsos, preocupadas com a sua credibilidade já que passaram a ser o maior canal disseminador de estudos e notícias.
As fake news parecem inaugurar a era da pós verdade, onde muitos se preocupam em procurar conteúdo com o propósito de fortalecer seu ponto de vista, deixando na maioria das vezes a verdade de lado, evidenciando esse comportamento conforme os extremos se enfrentam no teatro dos debates efêmeros das redes sociais.
É tanto delírio e tanta paixão por mentiras que Pinóquio aqui ficaria rosado diante da qualificada concorrência.