NOSSAS MEMÓRIAS E O METAVERSO

Se antigamente eram os diários e cadernos que registravam as nossas rotinas, hoje são nossos hábitos digitais que registram tudo com uma precisão ainda maior, e logo existe uma disputa pelo registro dessas nossas informações, alguma autorizadas outras nem tanto.

Nossas memórias acabam sendo para maioria das corporações um banco de dados para serem utilizados comercialmente na tentativa de uma melhor oferta de um anúncio, seja ele de produto ou serviço que melhor performe (converta) e o que diferencia essas corporações no tratamento dos nossos dados? Bem a maioria se diferencia pela clareza ou não do tratamento dado aos nossos dados, e no uso desses dados após o seu consentimento.

Um recente artigo publicado no The Guardian, “Memorylanes: Google’s map of our lives”, falava da participação do google na construção das nossas memórias digitais. O que pode ser concluído e edificado através das nossas pegadas digitais.

No artigo se exemplifica a construção das nossas memórias através do uso do Google Maps ou ao Google Street View como cápsulas do tempo, como capturar momentos ou paisagens em um determinado momento que ainda estão disponíveis muito tempo depois, mas acho que o problema vai muito além se considerarmos outros produtos relacionados, o próprio histórico de localização que pode sim ser desativado, caso você não queira que sua rotina seja registrada.

Aproveito esse artigo para destacar qual o tamanho pode ter o Google na sua vida, pois tenha certeza que a maioria dessas memórias podem ser armazenadas em produtos da mesma empresa, o Google, principalmente porque procura ser mais respeitoso com elas, na medida que não as usa para segmentar a publicidade Vejo se não autorizo isso a fazê-lo. Por muito tempo, uma das minhas preferências no Google é não personalizar meus anúncios.

Lembro que você pode usar um bloqueador de anúncios, existem diversos no mercado sem custo e que são muito eficientes, dessa forma a publicidade gerenciada pela empresa é completamente inofensiva para mim, e tudo indica, além disso, que meus dados estão em mãos razoáveis em termos de segurança e que, tecnicamente, eu poderia exportar meus dados e levá-los para qualquer outro lugar se quisesse com não complexidade excessiva.

Se você for uma pessoa metódica, e concentrar suas memórias em um só fornecedor será bem mais fácil a organização das suas rotinas, ainda que seja muito comum que a maioria das pessoas mudem mais ferramentas, fragmentem suas coleções de memórias sem perceber, ou sofram acidentes de algum tipo que de repente eliminam uma parte delas.

Para um exercício imagine que você use o Gmail desde 2004, e não tenha deletado seus e-mails, exceto aqueles que são obviamente spam, logo para esse caso uma pesquisa no meu Gmail oferece a possibilidade de voltar aos arquivos da sua vida em verso, aos interesses que você tinha há muito tempo, e para fazê-lo, além disso, com notável precisão em termos do sistema de busca. Não importa o que aconteceu há mais de quinze anos, o Gmail vai resgatá-lo em um instante.

Mas o correio, embora seja ocasionalmente útil para resgatar algum tópico, não é o que mais chama a atenção. Pense no Google Calendar? Se você usa a agenda do Google desde o seu início em 2006, e se costuma ser minimamente sistemático, tudo está lá: desde reuniões, encontros, até consultas médicas ou viagens. Logo se precisar lembrar o que aconteceu em um dia específico, você simplesmente volta ao dia em questão, e a convenientemente salvo, as atividades do dia, as notas de muitas reuniões, ou o hotel em que dormiu ou o lugar no mundo em que estava.

E o Google Maps? De todas os aplicativos, certamente o Google Maps é um dos mais fantásticos. Afinal poder ver em um mapa a História da Localização, que pode estar ativado desde 2009, e poder ver em um mapa a rota que fez naquele dia com notável precisão, é de espantar qualquer um. Qual era o nome daquele restaurante em que estávamos em São Paulo? Uma pesquisa combinada entre Calendário e Mapas, e você a encontra em um momento.

Se considerarmos também que como todos, você costuma tirar muitas fotos, lembre-se que elas podem estar armazenadas no Google Fotos, é bastante comum que eu possa reconstruir uma história completa de quase qualquer dia da sua vida, com dados sobre o que fez, onde estava, e até mesmo, em muitas ocasiões, documentação gráfica. A partir daí podemos adicionar o que quisermos: o que escrevi na minha página, as notícias que li e guardei, ou até mesmo as pesquisas que fiz. Seria quase um streaming da sua vida, pois revela com quem se comunicou por e-mail, quais compromissos ou atividades eu tive, onde eu me mudei e quais fotos eu tirei. Uma imagem bastante completa, que, como eu digo, eu não uso muito regularmente, mas de tempos em tempos, como memórias assistidas autênticas, como uma prótese para a memória. Uma vez que o cérebro tende a dar menos ênfase em lembrar o que ele sabe que há um backup de algum tipo, acho que isso o torna ainda mais esquecido se possível, mas a verdade é que eu não me importo: quando eu preciso voltar para algo, eu sei que na maioria dos casos, o esforço que eu tenho que fazer para obtê-lo é relativamente baixo.

Obvio, que nossos registros digitais, interligados ao metaverso e a realidade aumentada não poderiam ficar distante da criatividade dos autores e produtores da sétima arte, e assim como no filme “De volta para o futuro”, a nova atração da Amazon Prime, “Upload” tenta com a presença da realidade virtual, realidade aumentada e inteligência artificial projetar um futuro além da morte. Como seria nossa vida além da morte se pudéssemos escolher guardar nossas memórias de forma digital e termos nosso Avatar com base em nossas memórias, mantendo assim, pela inteligência artificial contato com as pessoas que amamos?

Na série, que se passa em 2033, quando as pessoas morrem, a consciência delas pode ser transferida para um ambiente de realidade virtual. Assim, elas vivem a eternidade em um espaço fantasioso e ainda podem ter contato com os vivos através da tecnologia.

A atração mostra a história de Nathan, um rapaz que após morrer em um acidente de “carro autônomo” teve sua consciência resgatada a pedido da namorada. Logo suas memórias são “carregadas” no luxuoso mundo de realidade virtual chamado Lakeview, onde os “moradores” podem fazer tudo o que quiserem, até ter um cachorro falante. Uma vez que suas memórias ganharam vida pela inteligência artificial, tudo pode ser projetado por realidade virtual e dessa maneira estabelecer uma conexão em um mundo digital, asséptico e “quase ideal”.

A série trabalha em uma realidade cada dia mais próxima construída através de passos recentes, que parecem prever o tempo da definição do metaverso como um lugar para o desenvolvimento de grande parte de nossa atividade.

A arte desenha muitos caminhos para nossa realidade, dentro do conceito de metaverso que pode ser entendido como o espaço coletivo, virtual e compartilhado criado pela convergência de realidade física virtualmente aprimorada e espaço virtual fisicamente persistente, incluindo a soma de todos os mundos virtuais, realidade aumentada e internet.

É cada dia mais presente a ideia de ambientes virtuais ligados à participação social que foi desenvolvida por muito tempo no Linden Lab, empresa que gerou Second Life, logo imagine até onde isso pode ir com um banco de dados cada vez maior? E qual o limite legal das nossa memórias?

Voltando a série, já próximo de falecer, e com o avançar da fragilização de seus sinais vitais Nathan, o ator se vê pressionado pela equipe médica e pela namorada a tomar uma decisão em pleno corredor do hospital, escolhendo por um lado dessa encruzilhada: Ou ia para uma cirurgia e tentava salvar sua vida biológica, com o risco de morrer sem resgatar suas memórias, ou optava por transferir sua memória para um ambiente digital e viver nesse mundo digital.

ALERTA DE SPOILER

Para prosseguimento da série (me perdoem pelo spoiler) ele optou por viver o mundo digital, e interagir com os seus através da realidade virtual.

É o fim dos beijos e dos abraços nessa vida física, onde ao invés de sonhos ao dormir, escolhemos sonhar no mundo virtual, e ainda que eu não goste dessa visão a cada dia mais próxima, ela é inevitável pelo avanço das tecnologias, então como um dinossauro, vou aqui continuar preferindo os beijos, abraços o tato e suspiros analógicos no lugar das assépticas fantasias digitais.

Muitos desafio legais vão surgir entre a sua memória digital e a recuperação dela por você ou seus herdeiros, afinal no filme da sua vida muitas outras pessoas estarão, abrindo uma discussão entre o privado e o íntimo entre a autorização ou não do uso desses dados compartilhados.

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