A Lei Geral de Proteção dos Dados da Pessoas existe para lembrar as empresas que somos pessoas antes de dados.
Lamentavelmente a digitalização das relações transformou todos em bits, logo nome, endereço, cpf, idade, sexo, parecem ser apenas células de uma planilha para ser preenchida, com seus outros dados de hábitos e costumes de consumo de bens e serviços, e de posse desses dados e de uma inteligência digital elaborar-se uma estratégia para vender mais e mais serviços e produtos.
A publicação de diplomas como o Marco Civil da Internet, a LGPD e o RGPD Europeu nascem para estabelecer limites a esse uso.
O fato das letras serem pequenas na política de privacidade e na autorização de uso dos seus dados não autoriza as empresas a criarem verdadeiras arapucas digitais com o propósito de lhe vender.
Recentemente, e em uma velocidade cada vez maior, a tecnologia deu aos profissionais do marketing, ferramentas que mais parecem um sonho, quando o assunto é venda. E assim na evolução da publicidade ao longo do tempo, e particularmente no meio online, estamos assistindo a evolução dos padrões de dissonância cognitiva.
Um clássico exemplo de sua instrumentalidade, é uma antiga campanha do Burger King há alguns anos, onde um anúncio de 15 segundos usou a “palavra mágica”, “OK Google”, para ativar os assistentes domésticos e smartphones de muitos usuários e fazer o anúncio “continuar” lá, fazendo com que ele lesse uma definição da Wikipédia que a empresa havia editado anteriormente, sem que você tenha pedido ou autorizado. O mais assustador, é que enquanto inúmeros usuários protestavam contra o uso indevido de seu dispositivo, outros editaram a Wikipédia e o Google tentaram impedir o seu uso, e o que fez a indústria publicitária? Premiou a campanha “criativa” com um Leão de Ouro, em que pese todo o debate ético no uso da informação, o que muito me assusta quando os valores são invertidos.
Onde a criatividade despreza ética e a confiança na relação de consumo o que só reforça a necessidade de se estabelecer limites ao uso da inteligência artificial e aos meios de marketing digitais no uso dos seus dados no processo de interação.
Há muitos exemplos desse tipo: de certa forma, a indústria publicitária pensa “divertida” ou “ousada” para fazer coisas novas, mesmo que incomode o usuário, da mesma forma que, na época, parecia uma ideia muito boa para pop-ups na internet, um formato que “atacava” você e que eles até chegavam a complementar com botões para fechá-los muito pequenos ou com movimentos ao redor da tela que faziam o usuário ter que literalmente “persegui-los”. Todas são ferramentas bastante questionáveis dentro das Leis que regram essa matéria.
Então onde estaria o problema, nesse caso em especial? Vamos deixar claro que se trata de uma dissonância criativa em dois níveis. Fundamentalmente, trata-se de dissonância cognitiva em dois níveis. O primeiro é óbvio, pois se coloque no lugar do usuário cujo assistente doméstico ou smartphone é ativado com o anúncio e começa a falar inesperadamente. Uma vez que esses tipos de campanhas geralmente, não são transmitidas apenas uma vez, mas repetidas vezes, e por alguns dias, em que o maldito anúncio condena todos aqueles que experimentam a “grande ideia” da empresa de sofrer tantas vezes quanto combinam com esse anúncio na frente da televisão.
Imagine se o carro da pamonha resolve patrocinar essa campanha e que cada vez que você falar calor em meio as elevadas temperaturas do verão, seu assistente virtual vai tocar o comercial do carro da pamonha: “Pamonha, pamonha, quem quer pamonha? Pamonha quentinha e natural…..” Já imaginou que agradável?
Destacamos também que há um segundo nível de dissonância, que corresponde ao da generalização, pois se a ideia em questão é particularmente original, ou acaba por funcionar, ou é simplesmente muito comentada sobre… o que é de se esperar que outras empresas façam, seguindo a lógica distorcida da indústria publicitária? De fato: imitá-lo. E se a perspectiva de uma marca martelando você ativando seu assistente doméstico ou seu smartphone a cada dois por três já era irritante, espere que outras marcas pensem que a ideia é muito boa e imite-a. É o problema da insustentabilidade das estratégias: talvez possa parecer uma boa ideia, mas pense no que acontecerá se outros te imitarem, como aconteceu no caso de pop-ups, até que empresas como google e outras foram forçadas a projetar maneiras de acabar com elas.
Um caso de dissonância cognitiva em dois níveis: o primeiro, não se colocar no lugar de quem está do outro lado. A segunda é não pensar na sustentabilidade da estratégia de comunicação, ou no que acontecerá se outras marcas a imitarem, já pensou se vierem com a mesma ideia o carro do picolé, o carro do gás, o da agulha pra desentupir fogão a gás…
O mesmo vale para a publicidade hiper-segmentada: enquanto o gerente de plantão está encantado consigo mesmo pensando como ele conseguiu espionar, perseguir, encurralar e forçar o usuário a cumprir seu anúncio pela enésima vez em sua navegação online, o usuário fica horrorizado pensando que está sendo espionado, que ele não sabe por que diabos um anúncio o persegue o tempo todo, e até vê fantasmas pensando que seu telefone o ouve.
O ambiente online, como todo mundo, tem seus protocolos e suas formas de fazer as coisas. A única coisa que o diferencia, possivelmente, é que muitos desses protocolos ainda não estão totalmente estabelecidos devido ao relativamente novo, mas o que é inconveniente, dificilmente muda com o tempo. E é claro que a falta de regramento não pode se constituir em uma autorização, um comando invertido para lógica do que tudo pode.
Logo fica a pergunta quais meus dados estão sendo repassados e para quem? E quem autorizou o cruzamento dessas plataformas e seus bancos de dados? Já estava tudo lá quando aceitei a política da plataforma digital para ter acesso aquela rede social?
Certamente, o Facebook não se sente confortável quando seus usuários são capazes de verificar de forma confiável a quantidade de informações que a empresa tem sobre eles e como eles revendem para quem quiser anunciar lá e segmentar com base nos critérios que lhes convém. A experiência de ver um desses anúncios direcionados a nós deve ser autenticamente como se sentir completamente nua na frente da tela, e apontada pela visão telescópica de um atirador que pode nos selecionar baseado não mais em variáveis usuais, mas em praticamente tudo o que dissemos em uma conversa, as notícias que lemos ou qualquer página que visitamos. Com o Facebook, os usuários são completamente transparentes, e tudo o que eles fazem ou dizem pode ser explorado por qualquer um que contrate publicidade lá para mostrar-lhes o que quiserem.
Ao mesmo tempo mudanças de política comercial e de privacidade podem abrir uma janela para mudanças no uso e cuidado com os nossos dados.
Logo o embate entre o Signal e o Facebook oferece mais um capítulo a esse artigo, pois o objetivo do Signal, obviamente, era fazer com que os usuários deixassem o WhatsApp e decidissem mudar para o Signal, uma mensagem instantânea dependente de uma fundação sem fins lucrativos, que provou de forma completamente confiável sua vocação para a proteção da privacidade de seus usuários e cujo uso está crescendo significativamente especialmente após as últimas mudanças nas políticas de privacidade do WhatsApp. Mas com sua campanha, a Signal conseguiu visualizar de forma completamente clara como o Facebook usa todos os dados que é capaz de gerar sobre cada um de seus usuários, incluindo muitas variáveis que nunca devem ser eticamente aceitáveis para segmentar, e como os revende para qualquer empresa que queira usá-los. Ele está olhando para a tela, e vendo sua imagem, e seus piores medos sobre sua privacidade, ou melhor, sobre a ausência dela, refletida nela.
A real normalização da espionagem ilimitada aos usuários, exposta de forma completamente convincente. Se você quer evitar que seus dados, onde você está, quais coisas você gosta, o que você come, o que você comenta em suas conversas, quais inclinações políticas você parece ter, etc. – de ser tratado assim e disponível para quem quer pagar por isso, você sabe: basta desinstalar Facebook, Instagram e WhatsApp, e recomendar todos os seus amigos para fazer o mesmo. Se você ainda acredita que sua privacidade e dados pessoais são o preço que você tem que pagar para usar certos produtos gratuitamente, você está errado. Existem alternativas, e não são simplesmente alternativas para se comunicar por mensagens instantâneas com seus amigos: são alternativas com relação à maneira como você entende a web e a publicidade.
Fica claro que na medida em que o mundo se torna cada vez mais mediado pela tecnologia, como ponte para o consumo de produtos, serviços e relacional, onde nos comunicamos com todos, evidencia-se também a necessidade do setor da publicidade online se dedicar a tendências ainda mais “humanizadas”.
Não importa com qual formato, mas os anunciantes que estabelecerem uma relação honesta e transparente com o consumidor, demonstrando cuidado e zelo com seus dados estarão saindo na frente.