É inegável o crescimento da influência da China no mundo nas duas últimas décadas, alimentado por seus 1,6 bilhões de consumidores, pela sua política centralizada de Estado que dita regiamente as regras para onde vai a economia e suas empresas e por uma política de crédito subsidiado para sustentar esse crescimento. O mundo inteiro vende e compra cada vez mais da China, em quase todos os itens que você imaginar a China passou a ser o maior mercado consumidor do mundo, e o fato de ter colocado mais de 300 milhões de consumidores que saíram da linha da pobreza para se tornarem classe média fez com os chineses sejam hoje líderes no número de carros fabricados e consumidos, bem como o maior mercado consumidor de alimentos, o segundo de aviões e por aí vai. Tudo que você produzir para exportação certamente vai levar a China em consideração.
É essa mesma China, que hoje influencia todos ao seu redor em um processo permanente no qual sociedades de outros países se enquadram na influência da cultura chinesa, em áreas que vão desde cultura, língua ou normas sociais, até questões como dieta, escrita, indústria, educação, linguagem, direito, estilo de vida, política, filosofia, religião, ciência, tecnologia, cultura ou sistemas de valor, um filme que já vimos por décadas de influência norte-americana. Desde a chegada ao poder de um Xi Jinping dando as novas tintas ao seu processo de referência globalizada. O próprio Xi em sua fala durante o 19º Congresso do Partido Comunista Chinês no outono de 2017: “será uma era em que a China se aproximará do centro do palco e fará maiores contribuições para a humanidade”. As pretensões chinesas sempre serão do tamanho do seu povo, e não menos que isso.
Evidentemente, o domínio político depende sempre do domínio tecnológico, seja no arsenal de guerra ou na crescente presença de suas plataformas, e é nesse contexto experimental que sua parceria cresce com o seu gigantesco vizinho no sul, a Índia. Na Índia, as empresas chinesas encontraram um mercado muito importante, sobre o qual podem exercer uma enorme influência: a grande maioria dos smartphones vendidos na Índia são de marcas chinesas, com a Xiaomi como líder, e aplicativos da China como o TikTok e outros permanecem extremamente populares, por sinal a liderança na venda de aparelhos naquele que é o segundo maior mercado de aparelhos que a Xiaomi lidera, e que as marcas chinesas ocupam três das cinco primeiras posições.
Logo vemos o papel dos fundos chineses de capital de risco no ecossistema empresarial indiano, tanto que em abril último, o governo indiano proibiu o investimento estrangeiro para brecar a aquisição de empresas indianas que por conta da pandemia passavam por momentos de incerteza, algo comum a muitas empresas mundo afora e que permitiu ainda mais o avanço das capitalizadas chinesas, matéria que foi destaque na Blomberg, gerando uma considerável oposição aos aplicativos chineses ao ponto de milhões de milhões de indianos baixarem um aplicativo para Android, Remove China Apps, que desinstala todos os aplicativos de origem chinesa do smartphone, até que o Google o excluiu de seu Play Market por violar suas políticas de comportamento enganoso, um assunto bastante interessante para outro artigo.
Em que pese a pouca ou nenhuma simpatia pelo comportamento chinês de não deixar passar as oportunidades da crise, as vendas dos telefones chineses continuam de vento em poupa, e é claro a Índia continua sendo o maior mercado do TikTok fora da China.
A guerra pela redução da influência chinesa no mundo digital indiano ganhou mais um capítulo nessa última semana, quando o governo indiano decidiu banir 59 aplicativos chineses, incluindo o já mencionado TikTok, o super-aplicativo WeChat, a comunidade da Xiaomi e aplicativos de video-calling, dois dos aplicativos do Alibaba, o terceiro site de comércio eletrônico do país, Club Factory, e diversos outros.
No entender do governo indiano, essa decisão decorre da natureza emergente das ameaças que esses 59 aplicativos representam e afirma que estão envolvidas em atividades prejudiciais à soberania e integridade da Índia, defesa, segurança e ordem pública, uma discussão que levantamos aqui na semana passada sobre a política de privacidade do TikTok e que vale para os demais aplicativos.
Existe a genuína preocupação de proteger e garantir a segurança e a soberania do ciberespaço indiano e entre outras coisas, a coleta de dados de cidadãos indianos e sua exportação para a China é “uma questão que gera uma preocupação profunda e imediata e requer medidas emergenciais”, segundo o governo da Índia. Ou seja, a mesma preocupação que deve ser preservada com a aplicação da nossa LGPD.
Aplicativos que pouco ou nada preservam a sua privacidade e a dos seus filhos, fazem parte da cultura chinesa, e como já destacamos em um outro artigo, não são poucos os relatórios e auditorias que indicam esse desprezo por sua privacidade, ou vamos imaginar que é mera coincidência que isso ocorra com a maioria dos aplicativos chineses? Evidentemente que o que assistimos é um padrão cultural que precisamos nos proteger, sob pena de entrarmos em um caminho sem volta.
A guerra pela defesa da sua privacidade e intimidade, mais do que uma defesa corporativa e de direitos humanos, precisa ser uma bandeira estratégica defendida pelos Estados que se preocupam com a sua autonomia e soberania. Não é uma perspectiva apenas, mas uma dura realidade que avança veloz e silenciosamente, uma expansão silenciosa e mortal para os valores democráticos defendidos pelo ocidente.
Parece ser uma troca de bastão, onde estamos saindo de uma rede fundamentalmente caracterizada por um domínio dos EUA derivado, entre outras coisas, da origem norte-americana da Internet, para uma em que a China assume um peso específico cada vez mais importante e que pretende usar para tornar sua filosofia e valores mais aceitáveis no resto do mundo. A mudança na filosofia e nos valores é muito importante, e certamente será notada de muitas maneiras. Em breve vamos ver que a reação da Índia não é pontual. A Índia pode ser apenas uma reação pontual, mas não acho que seja a última.
Ao lado da China, a vizinha Índia percebe o apetite do “parceiro” estratégico, gentil nos seus primeiros gestos e mortal quando se instala e logo com 1,4 bilhões de habitantes, os indianos sabem que podem ter seu papel como protagonistas e não apenas como coadjuvantes.
Com um mercado desse tamanho e crescendo a índices semelhantes a China, a Índia caminha a passos largos para ser o novo protagonista, encerrando 2020 como a 5ª maior economia do mundo, no mesmo ano em que o Brasil que já foi a sétima em 2011 deve encerrar em 13ª colocação.
China e Índia juntas encerram 2021 com quase 50% da população do mundo, e ninguém tem mais consumidores para mudar de faixa de consumo maior que o deles. Enquanto isso, aqui comemoramos o fato das empregadas e agora seus patrões não poderem ir mais a Disneylândia, e daí?