HANNAH ARENDT, O METAVERSO E AS MENTIRAS

No momento em que o Facebook mudou o nome do seu grupo para Meta colocou os holofotes sobre o metaverso, e tudo que ele pode implicar, o que logo acabou por produzir milhares de artigos sobre o assunto. Assim quando uma das menos ética das plataformas toma um assunto para si, passamos a olhar com mais cuidado ainda o assunto.

O termo metaverso foi cunhado em 1992 em um romance de ficção científica de Neal Stephenson, onde se refere a um espaço virtual compartilhado por humanos e “demônios” digitais. Ainda que Stephenson tenha afirmado que estava apenas “fazendo merda”, tecnólogos, incluindo o designer do Google Earth e da Amazon, admitiram ter sido inspirados pelo livro.

Mas qual a razão de nos importarmos com o metaverso?

O metaverso não é nem mais nem menos do que um sonho de poder que abraça tudo, criar um mundo virtual, gerenciá-lo exatamente como tem gerenciado sua rede social por anos, e, claro, preenchê-lo com, sim muita publicidade lastreada no seus dados, e no seu exercício ficcional do metaverso, você compra o que imagina e agora eles vão poder inclusive fazer você imaginar o que deve e precisa comprar. Se pensarmos no inferno da toxicidade, falsidade e problemas que o desenvolvimento do Facebook significou nas mãos de um gestor sem qualquer princípio ético básico, podemos ter a dimensão dos riscos dele desenvolver no metaverso.

Por isso que em muitos lugares do mundo as autoridades de defesa do consumidor querem conversar com a empresa para saber como ela protegerá seus usuários dos novos e inúmeros problemas? Por certo, um mundo virtual não é melhor ou pior do que outro mundo não virtual, seus problemas são semelhantes a este, e se suas possíveis soluções estão nas mãos de alguém sem princípios, sabemos perfeitamente bem o que acontece.

Como um Metaverso gerenciado pelo Facebook evoluirá? Bem a Microsoft, por exemplo, tem uma visão completamente diferente, quanto ao uso do metaverso nos negócios, o que não implica dizer que o propósito final não seja o mesmo, maximizar resultados. Para Microsoft, será um site “onde você vai fazer coisas específicas”, não um “onde você fica”. Claro, sendo uma empresa com uma grande experiência em realidade aumentada com seus HoloLens e sabendo como Mark Zuckerberg os gasta, a Microsoft já encontrou mais de setenta trabalhadores que deixaram a empresa rumo a Meta, em mais um capítulo no desenvolvimento da realidade virtual e realidade aumentada.

Uma visão semelhante é a da Apple, que aparentemente já tem muito avançado a apresentação de seus dispositivos relacionados à realidade virtual e aumentada, e que até o momento não pretende criar o metaverso como destino, mas uma plataforma na qual outros desenvolvedores possam oferecer suas propostas de valor, o que representa ser o marketplace do metaverso.  Nesse sentido, o dispositivo não é levantado como algo que você vai levar muito tempo, mas como um lugar para ir pontualmente para algumas coisas, seja um jogo, um conteúdo ou uma experiência comunicativa. Mas tudo isso, razoavelmente gerenciando o conceito de imersão, sem fingir criar um lugar para o qual as pessoas “escapam” e em que, como Meta pretende, geram mais renda para a empresa quanto mais tempo passam.

O fundamental em um desenvolvimento supostamente imersivo é como gerenciar as considerações éticas que, sem dúvida, ela vai gerar. E quando chegarmos a esse ponto, quais serão as decisões da maior rede social que vive e sempre viveu da postagem de mentiras sem se importar com a ética?

Dostoiévski escreveu: “A mentira é o único privilégio do homem sobre todos os outros animais”. Isso quer dizer que nós humanos, mesmo que não façamos isso, temos capacidade de fazer e atuar assim na vida, mas uma máquina só fala a verdade, e se a mentira sair como resultado do processamento de um sistema, há um problema com seu código de programação que precisa ser revisto, mas se uma máquina mente por objeto, então na verdade ela foi programada para isso. Inclusive as condições que elegem fatores para elaborar a resposta de uma máquina também são de responsabilidade de seus desenvolvedores.”

Em que bolhas universos virtuais programados por plataformas como o Face podem nos jogar?

Outro dia falando sobre a evolução da inteligência artificial, um aluno me perguntou: Se a inteligência artificial evolui com a captura dos nossos dados, em breve ela vai poder até identificar os nossos desejos?

A resposta a essa pergunta, precisa ser contextualizada, e é claro que se eu já responder agora nessas primeiras linhas o leitor pode desistir de ler o artigo por inteiro, então vejamos.

Se a inteligência artificial que programa o metaverso de quem constantemente não se importa em compartilhar mentiras e visões deturpadas de fatos, que tipo de projeções e avatares teremos desse universo?

Muitas vezes na política, a mentira é utilizada para enfraquecer o fato, por isso fake News se propagam, por serem a mentira que muitos queriam que fosse verdade, como a realização de milagres em remédios contra a covid, ainda que não tenham sido criados com o propósito de combater o vírus, como no caso de vermífugos, no “tratamento precoce” sem palavra pra isso.

O universo digital permite tamanha proliferação de mentiras que fica difícil distinguir o que é o que não é verdade, e logo os pobres de espírito e miseráveis de conhecimento acabam escolhendo a mentira que lhes convém, não se importando se é fato ou versão conveniente. Quem melhor definiu essa situação, a quase cinquenta anos, bem antes da internet chegar nas nossas casas e antes mesmo de Zukerberg ter nascido, foi Hannah Arendt, em uma série de entrevistas para o escritor Roger Errera em 1974, onde ela fala “Se todos mentem para você sempre, a consequência não é que você acredita nas mentiras, mas que ninguém mais acredita em nada. Isso ocorre porque as mentiras, por sua própria natureza, precisam ser alteradas, e um governo mentiroso precisa constantemente reescrever sua própria história. No final das contas, você recebe não apenas uma mentira, uma mentira que poderia seguir pelo resto de seus dias, mas sim um grande número de mentiras, dependendo de como o vento político sopra. E um povo que não consegue mais acreditar em nada não consegue se decidir. Ele se priva não só de sua capacidade de agir, mas também de sua capacidade de pensar e julgar. E com essas pessoas você pode fazer o que quiser.”

Qualquer semelhança com o que vivemos hoje, não é mera coincidência, pois interesses políticos e corporativos, sempre se apropriaram dos melhores discursos para contar grandes mentiras, como a indústria do cigarro, do petróleo e é claro dos mitos digitais em tempos de plataformas.

São verdades convenientes no universo corporativo e na política que criam esses falsos mitos que não se sustentam diante de meia dúzia de verdades, é claro que mitos respondem com agressividade tentando descredenciar o interlocutor quando são enfrentados, no típico exercício de fé de que “fala verdade quem fala mais alto” se esquecendo que a verdade por vezes prefere o silencio do que a discussão com a ignorância.

Saindo da política e indo para o uso do metaverso por corporações sem escrúpulos, ou sem a menor noção de ética relacional?

Logo imagine seu emprego, na afetividade dos lares, de pessoas solitárias, produzindo parceiros perfeitos, de acordo com seus sonhos, aspirações e desejos. Para ampliar a compreensão dos nossos desejos, e conhecer os hábitos, lembrando a máxima da economia de atenção onde tempo gera interação, interação gera dados, que gera mais afinidade, que gera mais tempo, que gera mais dados e que permite maior monetização.

Imagine toda essa informação captada por assistentes pessoais em nossas casas?

O que está em jogo na série é o embate entre o livre arbítrio versus o determinismo. Um determinismo que pode estar construindo enormes mentiras.

Afinal se máquinas podem aprender com nossos desejos, certamente poderão apenas falar o que nos agrada, verdadeiras bolhas de iguais que fazem do nosso mundo digital, um mundo perfeito onde a ausência de embate transforma pessoas e avatares dos seus desejos, como se a felicidade fosse apenas feita de aceitação e concordância.

Regrar o metaverso é ofertar uma solução ética jurídica para esse universo entre o desejo e a contrariedade, entre o querer e o poder.

Não se trata apenas de do Direito aplicar suas regras entre humanos e máquinas, mas entre as fragilidades e as contradições de que se olha no espelho pensando muitas vezes ser a perfeição. Por isso viva a imperfeição humana que ultraja e enfrenta, onde não existe espaço para perfeição, mas sim para eterno aprendizado por sermos humanos.

Lembro que no filme Ex-Machina (2015), um jovem programador chamado Caleb Smith é selecionado para participar de um experimento de IA em que é confrontado com um androide chamado “Ava”, o filme é dirigido e escrito pelo cineasta Alex Garland. E ela (Ava) é um exímio sistema de inteligência artificial, mas não exatamente um androide confiável. A capacidade que mais chama atenção em Ava é a sua habilidade em mentir. Tanto é que a grande trama do filme é como ela engana o jovem Caleb com o propósito de fugir do laboratório onde estava presa.

Logo à medida que a inteligência artificial avança, com a instrumentalidade visual que o metaverso pode proporcionar, cresce também a capacidade desses sistemas em reproduzir tendenciosamente vídeos, áudios, imagens e outras formas de mídia comumente usadas como evidências da verdade. Ou seja, a inteligência artificial também sabe mentir, e muito bem. Novos softwares que usam conceitos de IA tem gerado debates sobre como o discernimento da verdade será diferente nos próximos anos, afina arranjos probalísticos representam a maioria mas podem construir gigantescas mentiras para um aparcela da população.

Segundo uma lenda do século XIX, a Verdade e a Mentira se encontram um dia.

A Mentira diz à Verdade: “Hoje é um dia maravilhoso!”

A Verdade olha para os céus e suspira, pois o dia era realmente lindo. Elas Passaram muito tempo juntas, chegando finalmente ao lado de um poço.

A mentira diz à verdade: “A água está muito boa, vamos tomar um banho juntas!”

A verdade, mais uma vez desconfiada, testa a água e descobre que realmente está muito gostosa. Elas se despiram e começaram a tomar banho.

De repente, a Mentira sai da água, veste as roupas da Verdade e foge.

A Verdade, furiosa, sai do poço e corre para encontrar a Mentira e pegar suas roupas de volta.

O mundo, vendo a verdade nua, desvia o olhar, com desprezo e raiva.

A pobre Verdade volta ao poço e desaparece para sempre, escondendo-se nela, sua vergonha.

Desde então, a Mentira viaja ao redor do mundo, vestida como a Verdade, satisfazendo as necessidades da sociedade, porque, em todo caso, o Mundo não nutre nenhum desejo de encontrar a Verdade nua.

O metaverso, utilizando essa lógica, da era da informação que criou uma sociedade denominada por muitos como “a sociedade da informação” com o passar do tempo passou a gerar tanta informação, sobre as mais diversas plataformas, e assim nunca foi tão fácil produzir conteúdo, sejam eles por vídeos, textos, áudios, e assim com tanta informação e tanta facilidade para produzir todo e qualquer tipo de informação, acabamos por evoluir por uma sociedade que se sustenta pela sua atenção, e logo criou o termo “economia da atenção, que por razões óbvias me permite chamar de “sociedade da desatenção”, ou “economia da desatenção”

E em breve uma sociedade da desatenção alimentada com a riqueza visual do metaverso.

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