Estava escrevendo sobre o amor patológico que as pessoas tem por mentiras, a alegria que elas tem em espalhar mentiras em redes sociais, quando ao ler no Estadão o artigo “BOATOS COMO ORWELL PREVIU A ONDA DE FAKE NEWS” de Amanda Mont’Alvão Veloso, psicanalista e jornalista, entendi que o artigo caiu feito uma luva, uma daquelas coincidências que não se deve desperdiçar.
Assim transcrevo: “Quando um boletim interrompeu a programação musical da rádio CBS em 1938, para anunciar uma invasão alienígena aos EUA, milhares de pessoas, em pânico, sobrecarregaram o trânsito e as linhas telefônicas na tentativa de fugir. Só que a ameaça, transmitida na véspera do Halloween, não era real. De Nova York, Orson Welles dramatizava o que H. G. Wells tinha imaginado em seu livro A Guerra dos Mundos. A peça radiofônica de Welles, tributária da inventividade da ficção, acabou fazendo um streaming de medos universais. A transmissão tinha conteúdo, embalagem e entonação de jornalismo. Mas não passava de uma encenação para fins de divulgação cultural. O pânico decorrente da audição do programa é até hoje estudado e na época foi objeto de uma pesquisa da Universidade de Princeton. Acredita-se que muitos dos ouvintes alarmados tenham sintonizado na rádio após o início da transmissão. “Todavia, o mais espantoso foi que pouquíssimos ouvintes americanos fizeram algum esforço de verificação”, comenta um George Orwell que ainda não tinha escrito A Revolução dos Bichos e 1984 ao resenhar o livro The Invasion from Mars ( A Invasão Marciana), do psicólogo Hadley Cantril. Por mais que o radiojornalismo desfrutasse de grande credibilidade naquele tempo, a chegada de imensos alienígenas aos EUA carecia de certo ceticismo, o que poderia ser resolvido com a consulta a outras fontes. Para Orwell, era de especial interesse que os pesquisadores tivessem encontrado uma conexão entre a infelicidade pessoal e a disposição para aceitar algo inacreditável. Eventos contemporâneos atualizam esta perplexidade, pois quem diria que em 2020 americanos iam ingerir ou injetar desinfetante após sugestão de seu presidente? Na era dos vídeos de “deep fake”, a história segue confirmando que a credulidade não tem freios e pode custar reputações, sistemas políticos e vidas.
A verdade nunca custou tanto, diria Orwell. É o desafio presente em todos os tempos, revitalizado a cada irrupção de falsificações de fatos ou cegueira discursiva. É o tema mais caro ao escritor inglês nascido na Índia, como podemos identificar no livro Sobre a Verdade, recém-lançado pela Companhia das Letras e com tradução de Claudio Alves Marcondes. Trata-se de uma coletânea de trechos extraídos de livros e ensaios escritos nas décadas de 1930 e 40 – dentre eles, Dias na Birmânia, O Caminho para Wigan Pier e A Revolução dos Bichos. Lidos em perspectiva cronológica, os textos arregimentam os pressupostos que permitiriam Orwell enlaçar os séculos 20 e 21 com o assustador 1984 e seu Ministério da Verdade que só manufaturava mentiras.
Encarar os fatos, por mais amargos que fossem, era o compromisso que Orwell demandava de qualquer um que o lesse. A recusa à verdade o incomodava profundamente, como neste fragmento do ensaio Culture and Democracy, de 1941: “Uma das piores coisas da sociedade democrática nos últimos 20 anos é a dificuldade de qualquer conversa ou pensamento franco.”
Passados cerca de 80 anos dos escritos de Orwell, os homens, em que pese todas as possibilidades de se identificar na notícia se é fato ou boato, continuam dando espaço para, como num rastro de pólvora, fazer circular mentiras, não se importando com o resultado delas e nem mesmo se desculpando quando tem conhecimento que era fake, o que não me surpreende, afinal, idiotas não excitam, seguem em frente com a ignorância que é seu traço.
Isso me remete Raymond Aron, filósofo e político francês, que uma vez em uma entrevista “que afirmava ter um único grande arrependimento na vida: não ter guardado certa distância da realidade.” O que me permite concluir que a distância das notícias pode ser um bom tempero para identificar a verdade.
A verdade, não pode ser uma mercadoria em balcão, ela é a base das nossas relações. Como construir e aprofundar relações pessoais com grupos sem o compromisso com a verdade?
A banalização das Fake News é resultado de uma sociedade que privilegia a força no lugar da razão e que no caminho enterra vidas, reputações e oportunidades.
O amor pelas mentiras é filho do desprendimento da relação com o próximo, visto que Fake News são a tentativa da materialização da mentira que gostaríamos que fosse verdade.
