DIREITO, ÉTICA E TRANSFORMAÇÃO DIGITAL

A transformação digital, seja no setor público ou no privado, apresenta dois grandes desafios. O primeiro deles é cultural na medida que exige com que o corpo de colaboradores entenda o que pretende e para onde pode ir com a transformação digital, o segundo uma vez conquistado os corações e mentes da equipe é de ordem ética, afinal a ampliação do processo de transformação digital implica em uma quantidade gigantesca de novos dados, fundamentais para o processo de tomada de decisão na transformação digital, mas ao mesmo tempo limitado pelo nosso Marco Civil da Internet e pela Lei Geral de Proteção de Dados das Pessoas. E é sempre bom lembra que na empresa privada ou no órgão público, mais informação sempre será mais poder, por isso as regras de compliance precisam ser claras. É ai que a governança de dados ganha um papel de destaque.

O que fazer, como e de que forma operar com a coleta e o tratamento de tantos e infundáveis dados?

Quando o universo comunicacional das nossas rotinas é dominado por palavras como: Inteligência artificial, 5G, aprendizado de máquina, economia da atenção, economia colaborativa, redes sociais, fake news, economia da desatenção, robôs colaborativos, transformação digital e etc., nos perguntamos onde sobra espaço para ética?

É evidente que ela deve fazer parte do alicerce na edificação dessa nova sociedade. Uma construção relacional no universo dos negócios ou no seio das nossas famílias é por certo o prenúncio de que algo não está bem, e por certo não vai funcionar sem o prejuízo de uma das partes.

A ética não pode ser vista como qualidade ou diferencial, pois quando é vista dessa maneira acaba por funcionar como recibo de uma sociedade injusta, e logo que precisa ser ressignificada.

A transformação digital começa pela transformação das pessoas nas empresas, sócios e colaboradores, pois ainda que seja obvia a maioria dos executivos e empresários tratam a transformação como um departamento da empresa, uma obrigação de lançar um serviço ou um produto novo, e não um requisito de inserção no universo atual.

As organizações, cada vez mais conscientes dos riscos da perda de informações confidenciais, estão trabalhando para implementar uma cultura que monitore a proteção de seus dados mais sensíveis.

Os dados tornaram-se o eixo que articula a tomada de decisão nas organizações. É um ativo estratégico tanto para as empresas quanto para a administração pública, que graças a tecnologias como inteligência artificial e big data, obtém inúmeras vantagens. No entanto, esses avanços levaram a um cenário de crescente complexidade, com a segurança como um dos principais aspectos que devem ser garantidos ao trabalhar com dados.

Na perspectiva da administração pública, não é fácil acomodar a disrupção tecnológica em um ambiente burocrático. Apesar disso, das administrações, devemos ter uma atitude proativa não apenas quando se trata de entender essas tecnologias, mas também de incorporar todo o potencial que elas oferecem.

A inteligência artificial e big data, que têm que ser um componente para melhorar os serviços que oferecemos aos cidadãos, pois o poder que nasce da combinação de algoritmos e dados deve nos permitir abordar os cidadãos de forma mais proativa, personalizada e humana, e não como propósito de dividendo político eleitoral.

Diante do aumento geral dos incidentes relacionados à segurança, é preciso identificar onde estão as informações confidenciais que queremos proteger, agir nesses ambientes, sendo que essa classificação se atualiza permanentemente.

Uma das principais diferenças entre a realidade das empresas e da administração pública está no conhecimento. Em um momento em que a inovação avança cada vez mais rápido, a administração pública deve assumir o desafio de entender o impacto da tecnologia. As empresas têm a agilidade que falta à administração pública, pois isso requer recursos, tempo e curva de aprendizado.

Embora os dados nasçam dos mesmos ambientes de sempre, as mudanças tecnológicas fazem com que ele viaje por outros canais. Isso adiciona novos fatores de risco para as organizações de cibersegurança, pois quem ataca explora permanentemente novas alternativas para promoção de novos ataques.

Logo essa transformação passa por entender que o principal ativo da transformação são as pessoas, pois são elas os agentes das mudanças e não um novo software, logo os valores morais e éticos dessas pessoas estarão refletidos desde a concepção do desenho de um software até seu uso e controle.

Regras e procedimentos são definidos para todos, para algum tipo de senso de justiça, de isonomia, delimitando sistemas que, devido à enorme variabilidade das pessoas, não costumam funcionar para todos, mas gerar atitudes incorretas. Mas se as pessoas, trabalhadores, se consideram um recurso, o que geralmente é feito como tal, é simplesmente tentar impor certas políticas a elas ou esperar certos comportamentos.

Tente imaginar o universo da ética nas relações construídas em redes sociais?

Pois afinal quem procura verdades nas redes sociais? Quem procura saber o que é real e o que não é por traz daquelas fotos maravilhosas, e não falo dos filtros que elas tem, mas do sorriso alegre e plástico em algumas reuniões de famílias? Quem se interessa verdadeiramente com a dor do outro, ao ponto de parar suas tarefas pra ajudar o amigo, o irmão, o colega de trabalho, ou acalentar o coração da pessoa amada?

É lá, nas mídias sociais, que pela instrumentalidade dos algoritmos compartilhamos, curtimos e comentamos projeções de uma tentativa de verdade, seja sobre nós mesmos, ou sobre ideias e políticos que queremos defender.

E por isso a recuperação de valores éticos nesse espaço de comunicação também influi na transformação digital pautada em valores necessários e básicos para um novo por vir.

Sem filtros éticos, sem controles, acabamos por reproduzir versões, mentiras, fantasias ou opiniões unilaterais sem escutar, compreender e entender um outro lado, afinal já escolhemos um lado, aquele que nos apresenta mais conveniente, pois refletir, questionar e pensar exige um esforço hercúleo que nos tira da nossa zona de conforto logo, é melhor aceitar como verdade o que o outro publicou, mesmo que não seja verdade, ou que seja única e exclusivamente a versão comprometida de alguém.

Se uma empresa quer realizar um processo de transformação digital, o que ela tem que fazer não é simplesmente adquirir e implementar tecnologia, mas, acima de tudo, fazer com que as pessoas que trabalham com ela se tornem apóstolos autênticos do digital: que elas entendam perfeitamente, que elas identifiquem a necessidade de mudar, e que acreditam nela.

Isso invariavelmente implica partir de situações pessoais muito diferentes: de verdadeiros entusiastas e convertidos, a céticos, temerosos ou descrentes. Os procedimentos para trabalhar com cada um desses perfis são e devem ser completamente diferentes, mas as empresas, em muitos casos, tendem a minimizar a importância de ferramentas como a formação, e projetá-las de forma homogênea, como cursos que geralmente têm baixa prioridade e que são praticamente os mesmos para todos os colaboradores, independentemente de suas características. O papel da liderança nesta questão é fundamental: não se trata apenas de definir uma direção, mas de acompanhar, de compreender a resistência e de tratá-la como prioridade, como algo a ser superado de alguma forma. Identifique essas resistências, isole atitudes refratárias e ponha um fim a elas. Em geral, se mostrarmos a uma pessoa que a digitalização não é uma alternativa, mas uma obrigação e, acima de tudo, se demonstrarmos adequadamente o valor que ela traz, essa pessoa optará pela transformação. Somente nos casos em que tal transformação é claramente impossível, quando encontramos pessoas que especificamente se recusam a mudar ou manter uma atitude permanentemente hostil à mudança, será hora de optar por uma ação disciplinar.

Em muitos casos, essas resistências à digitalização são disfarçadas, pois não há nada especialmente na era das pessoas que as torna refratárias à tecnologia ou dinossauros, você só tem que ser capaz de mostrar-lhes a proposta de valor que existe por trás dela. Trabalhar com as pessoas, com seus medos, seus problemas e suas necessidades de treinamento, para que elas se sintam seguras e adotem tecnologias que se tornaram, em muitos casos, uma necessidade para as empresas.

A transformação digital das empresas não existe. Se queremos transformar uma empresa, vamos transformar as pessoas que trabalham nela, e priorizar as medidas voltadas para a realização dessa transformação. Não há outra maneira de fazer isso.

Uma investigação da Reuters também publicada pela The Markup sobre as práticas comerciais da Amazon e o uso de informações de outras empresas participantes de sua plataforma fez vários membros do Congresso dos EUA ficarem boquiabertos.

O que diz a pesquisa? Basicamente, coisas que todos nós sabemos há muito tempo: que a Amazon usa sistematicamente informações de outras empresas para tomar decisões sobre copiar seus produtos mais vendidos, e até mesmo manipula seu sistema de pesquisa para que esses produtos copiados apareçam acima das marcas originais quando os clientes os procuram, em muitos casos com classificações igualmente manipuladas, com total desprezo a ética relacional, em um flagrante caso de abuso da plataforma e prática anticoncorrencial.

O curioso foi a negação dos executivos das maiores empresas na negação dessa prática, mesmo com todas as pesquisas apontando. Mentir intencionalmente para o Congresso dos Estados Unidos não é uma questão pequena, e na verdade, o que está sendo levantado agora é a possibilidade de que o Departamento de Justiça agora empreenda uma investigação criminal contra executivos que claramente enganaram e mentiram para o Comitê do Congresso encarregado da investigação, enquanto eles também estavam sob juramento. Em alguns casos, um executivo da Amazon chegou a afirmar especificamente que “não usamos dados de vendedores individuais diretamente para competir com eles na plataforma da empresa”, exatamente o oposto do que a pesquisa recente afirma.

O que se conclui nesse universo de big techs que estão dominando a economia, é que temos empresas que, além de manterem atitudes hostis marcante em relação aos representantes dos cidadãos, mentem para eles de forma descarada.

Mas essa é uma questão isolada?

Infelizmente não, pois todos os dias, estamos nos acostumando com a visão dos gestores da empresa que, quando investigados, decidem ignorar completamente qualquer questão ética e mentir de forma completamente flagrante e óbvia, colocando os lucros da empresa à frente das demandas de responsabilidades que os tornam perfeitamente qualificados para isso, como juízes ou membros do Congresso. Em muitos aspectos, a prática da ética empresarial parece ter sido substituída por um “vale qualquer coisa” que leva esses gestores a ficarem perfeitamente confortáveis em negar tudo, mesmo quando documentos internos da empresa ou evidências mais claras indicam uma realidade muito diferente.

O Direito possui sim instrumentos legais para esse balizamento, mas é o valor cultural defendido pelo gestor que define os parâmetros de rotinas na defesa de uma postura ética relacional.

(Artigo publicado no site www.jusbrasil.com.br, em 26 de Maio de 2022).

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