CRIANÇAS E DESCONEXÃO NA SOCIEDADE DA DESATENÇÃO

Você consegue dizer com precisão quantos minutos ou horas seu filho passa diariamente diante das telas de um celular, tablet e televisão? Consegue dizer exatamente o uso que ele dá a esses dispositivos ao longo do dia? Quais conteúdos ele está acessando e quanto tempo se dedica a eles? Consegue fazer um paralelo entre o tempo dispendido dele para com os gadgets e quanto tempo ele se dedica aos estudos?

Se você não tem uma reposta precisa para essas questões não se desespere, você faz parte de uma maioria de mães e pais que de fato não conseguem, pela dinâmica desses dispositivos qualquer tipo de controle.

Recentemente uma pesquisa feita pela USP e publicada no Jornal Estadão, identificou que um em cada quatro adolescentes abusa do videogame, e a mesma pesquisa apontou que 85% dos entrevistados jogam e que 28% destes atingiram os critérios do Transtorno de Jogo pela Internet, agora classificado como doença pela OMS

Segundo a pesquisa do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de São Paulo (USP).esse problema entre jovens brasileiros é maior do que em todos os países que já têm pesquisas e precisa ser analisado sob a perspectiva de epidemia.

Isso mesmo, a lógica comercial que pouco está ligando para saúde dos nossos filhos transformou a disputa da atenção dos nossos rebentos em uma epidemia.

Para identificar o problema ao longo da história, com o crescente uso dos dispositivos digitais, o estudo considera 50 trabalhos com dados desde os anos 1970 até 2016 (incluindo EUA), onde a média oscila de 1,3% a 19,9%. O uso excessivo leva ao desestímulo de atividades escolares e sociais, causa sintomas de abstinência quando retirado, e faz com que o adolescente se isole e tenha comportamento agressivo.

Esses dados mostram também que, apesar de o uso de videogames no Brasil ser compatível com o mundial, o uso problemático é mais alto que a média de outros países. Uma das hipóteses para isso está na dificuldade de os brasileiros se envolverem com outras atividades pela falta de acesso a serviços de lazer e esportes públicos e pelos altos índices de violência que afetam os encontros presenciais. Ou seja faltam equipamentos de lazer espalhados pelas cidades e principalmente instrutores disponíveis nessas áreas para que o ocorra o uso desses equipamentos de forma segura.

A pesquisa permite entender quem está mais propenso ao uso problemático. Entre as características do perfil de estudantes com maior probabilidade de jogar videogames de modo problemático estão: ser do sexo masculino, usuário de tabaco e álcool, praticar ou ser vítima de bullying e ter níveis clínicos de sintomas de hiperatividade, problemas de conduta e de relacionamento. Sim o problema tem diversas relações e raízes sociais e familiares.

Ou você já não percebeu os conflitos que nascem quando colocamos regras no uso desses equipamentos?

Veja quantas vezes essa cena se repete em nossos lares, ou de amigos e vizinhos, quando de longe observamos nossas crianças e seus olhares fixos na tela do celular ou tablet, e logo tentamos imaginar o que está por traz daquele olhar doce, que nesse momento harmoniosamente, muda de angelical para tenso.

Esse é o pensamento mais comum de mães e pais que resolvem terceirizar a atenção dos filhos para os games, seja no celular, tabletes ou nos monitores de tvs entre outros gadgets. E aqui nesse parágrafo não existe o propósito de censura ou culpa, mas a anotação de um problema recorrente em nossa sociedade da desatenção. Onde as grandes corporações não economizam um só centavo na busca da atenção dos nossos filhos, nessa disputa pelo tempo deles e o nosso, onde não existe escrúpulos no uso de técnicas viciantes.

Você não está só, afinal quantos são os pais que acompanham o tempo de uso dos seus filhos nos celulares, ou na soma dos diversos aparelhos onde rodam os jogos multiplataformas?

Quais são os controles de uso para cada jogo, nas configurações dos aparelhos? E como você faz isso nos jogos em que eles participam em rede?

O vício em games pode virar uma epidemia? Qual impacto desse tempo de atenção (desatenção) na educação do seu filho ou no convívio social dele com amigos e com a família? Até que ponto transformar nossos eletrônicos em babas dos nossos filhos pode ser prejudicial aos nossos rebentos?

Essas questões são apenas uma introdução para um debate amplo sobre a nossa relação com a tecnologia, os hábitos, benefícios e malefícios que ela pode trazer. E evidentemente a julgar pelo valor pago recentemente pela Microsoft por uma empresa de games pode dar a dimensão do universo de negócios para esse segmento. Quando uma das maiores empresas de tecnologia resolve fazer da compra de uma empresa de games o maior negócio da história das aquisições, muito da nossa atenção deve ser dada a esse tema.

Games, metaverso, educação dos nossos filhos, tudo junto e misturado no processo cultural construído em uma sociedade cada dia mais digital, nos levam a obrigatórias e novas reflexões.

Um livro fundamental dessa relação entre o seu filho, e as tecnologias, que fazem parte da rotina de todos nós, é “Irresistível: Por que você é viciado em tecnologia e como lidar com ela” de Adam Alter, que com muita profundidade trata do tema, da instrumentalização dos nossos vícios pelo universo digital, suas estratégias e os malefícios, com diversos capítulos dedicados aos centros de tratamento para esse “vício comportamental”.

Adam em um trecho do livro destaca, como a criação de um game pode ser o início de um vício, identificado pelo próprio criador: “Meninos passam menos tempo envolvidos em interações on-line tóxicas, mas muitos são viciados em games. O problema é tão incontestável que alguns desenvolvedores estão retirando seus jogos do mercado. Eles começaram a sentir remorso (algo que você não deve esperar da indústria dos games), não porque seus games trazem sexo ou violência, mas porque são diabolicamente viciantes. Com a combinação exata de expectativa e feedback, somos encorajados a jogar por horas, dias, semanas, meses e anos a fio. Em maio de 2013, um recluso desenvolvedor vietnamita chamado Dong Nguyen lançou um jogo chamado Flappy Bird.30 Esse jogo simples para smartphone pedia que o jogador guiasse um pássaro voando por obstáculos, tocando repetidas vezes na tela do celular. Por um tempo, a maioria dos usuários ignorou o Flappy Bird e os resenhistas condenaram o jogo por ser muito difícil e ter uma estética parecida demais com a do Super Mario Bros., da Nintendo. Flappy Bird passou oito meses esquecido no fim das listas de aplicativos baixados. Mas a sorte de Nguyen mudou em janeiro de 2014. O Flappy Bird atraiu milhares de downloads do dia para a noite e, no fim do mês, o jogo se tornou o aplicativo gratuito mais baixado na loja on-line da Apple. No auge do sucesso do jogo, o estúdio de Nguyen estava ganhando 50 mil dólares por dia só de receita com anúncios. Para um designer de games modesto, foi o Santo Graal. Nguyen deveria ter entrado em êxtase, mas ficou arrasado. Dezenas de resenhistas e fãs se queixaram de terem ficado extremamente viciados no Flappy Bird. “Ele acabou com a minha vida […] seus efeitos colaterais são piores do que os da cocaína e da metanfetamina”, publicou Jasoom79, no site da loja da Apple. Walter19230 intitulou sua resenha de “O Apocalipse”, e começava: “Minha vida acabou”. Mxndlsnsk advertia outros jogadores a não baixar o game: “Flappy Bird vai ser minha ruína. Deixem-me começar dizendo para NÃO BAIXAR esse jogo […]. As pessoas me avisaram, mas não dei bola […]. Não durmo mais, não como mais. Estou perdendo amigos”. Mesmo que essas resenhas sejam exageradas, o jogo parecia estar causando mais mal do que bem. Centenas de jogadores fizeram Nguyen parecer um traficante quando compararam seu produto a metanfetamina e cocaína. O que começou como uma obra de amor cheia de idealismo parecia corromper vidas, e a consciência de Nguyen eclipsou seu sucesso. Em 8 de fevereiro de 2014, ele tuitou: Lamento, usuários do Flappy Bird, daqui a 22 horas, vou tirar Flappy Bird do ar. Não aguento mais. Alguns usuários do Twitter acreditavam que Nguyen estava se referindo a queixas de propriedade intelectual, mas ele descartou rapidamente essa suposição: Não tem nada a ver com problemas legais. É só que não consigo mais continuar com isso. O jogo desapareceu conforme anunciado e Nguyen fugiu dos holofotes. Centenas de imitações de Flappy Bird pipocaram na internet, mas Nguyen já estava focado em seu projeto seguinte, um jogo mais complexo especificamente projetado para não ser viciante.” Essa pequena narrativa serve apenas como um exemplo que não é isolado.

No início do ano foi publicada uma nova versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, chamada CID-11. Nela, o problema é definido como um padrão de comportamento caracterizado pela perda de controle sobre o tempo de jogo, sobre a prioridade dada aos jogos em relação a outras atividades importantes e a decisão de continuar em frente à tela apesar de consequências negativas.

Para a OMS, o diagnóstico é dado quando os prejuízos afetam de forma significativa as áreas pessoais, familiares, sociais, educacionais e ocupacionais ao longo de cerca de 12 meses.

Nesse momento pare e veja se já não viu algo próximo de você? Na sua casa ou na casa de um parente ou amigo, que tem um filho que vive nesse universo paralelo?

Quantos de nós já presenciamos, ou escutamos a narrativa de pessoas que chegam a passar mais de 24 horas seguidas conectado sem ir ao banheiro, muitas vezes fazendo as necessidades nas calças.

Quantas são as que param de tomar banho, se afastam dos amigos, perdem o emprego ou o total interesse pelo estudo.

Em todos esses jogos algo é bem comum, aos piores vícios as primeiras doses são de graça, ou sempre muito facilitadas.

Essa indústria é perita nas inúmeras técnicas para reter à atenção dos jogadores, logo imagine seu filho de 7 ou 8 anos diante de tanta estratégia comercial pensada pelos melhores profissionais do mundo para reter a atenção da criança que absorta na tela permanece desatento a tudo que ocorre no mundo ao seu redor?

Veja quantas vezes você já chamou seus filhos para saírem do jogo e eles disseram que não podiam pois se saíssem morreriam (no sentido do game), ou que não poderiam sair do jogo pois estavam jogando em rede com os amigos e se saíssem desfalcariam sua equipe, ao equivalente a exclusão social, ou você pensava que esse tipo de estratégia era aleatória?

Afinal a maioria dos jogos de hoje não têm mais game-over, nem pausa, e assim se a pessoa sai, ela deixa seu time na mão. E o que isso faz? Bem muitos sabem que pode representar em diversas vezes retaliação além do famoso F.O.M.O. [fear of missing out, ou medo de ficar de fora].

Pessoas que apresentam doenças mentais prévias, como depressão, têm mais chances de desenvolver o transtorno. O mesmo vale para quem já enfrenta problemas familiares e baixa autoestima, já que, enquanto jogam, elas se sentem parte de alguma coisa que não têm na vida real e ainda se beneficiam do bem-estar provocado pela liberação de dopamina no cérebro.

O tratamento para o transtorno de jogos eletrônicos é similar ao de outros vícios: psicoterapia e, em alguns casos, medicamentos. A ideia por trás da designação da OMS não é estigmatizar nem proibir os games. Ela procura justamente contribuir para a ampliação do número de diagnósticos e do maior acesso aos diferentes tipos de ajuda, já que as seguradoras de saúde serão pressionadas a pagar pelo tratamento, pois agora passa a ser reconhecido como uma condição médica.

Mas, de novo: há uma grande diferença entre ser um jogador entusiasmado e ser um viciado. A preocupação exagerada de pais sobre os efeitos dos games nos filhos ainda não foi reconhecida pela OMS como transtorno obsessivo. Ainda não.”

As estratégias para reter a atenção do seu filho, estão presentes nos jogos mais “inocentes” como o Super Mario Bros. conquista novos fãs porque não existem barreiras para jogar. Mesmo que não saiba nada sobre o console da Nintendo, a pessoa consegue desfrutar o jogo desde o primeiro minuto. Não é necessário ler nenhum manual cheio de adjetivos motivacionais nem queimar os neurônios em tutoriais explicativos antes de começar. Em vez disso, seu avatar, Mario, aparece no canto esquerdo de uma tela quase vazia. Como o cenário está vazio, é possível apertar os botões do controle da Nintendo aleatoriamente sem problema algum, descobrindo o que faz Mario pular e como movê-lo para a esquerda e a direita. Não dá para ir muito para a esquerda, então o jogador logo aprende a se mover para a direita. E não há explicações sobre o que faz cada comando, em vez disso, você aprende fazendo e usufrui da sensação de controle que advém de adquirir conhecimento pela experiência. A jogabilidade dos primeiros segundos é projetada de maneira brilhante para fazer duas coisas bem difíceis ao mesmo tempo: ensinar e preservar a ilusão de que nada está sendo ensinado, tudo pra roubar a sua atenção, produzindo uma geração de desatentos.

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