Nos próximos dias o Brasil terá o seu primeiro diploma normativo regulamentando os criptoativos, um primeiro passo na regulação desse universo de ativos intangíveis.
Conceitualmente as moedas digitais usam sistemas de criptografia para a realização de transações. Ao contrário do dinheiro emitido por governos (dinheiro soberano), como dólar ou real, as criptomoedas são lançadas por agentes privados e negociadas exclusivamente na internet, e nesse momento já existem centenas delas pelo mundo, algumas lideram como o bitcoin.
A importância do seu regramento é fácil de se explicar, seja pelo elevado número de pessoas que atualmente já estão registradas nas corretoras no Brasil, cerca de 3 milhões de pessoas, algo que já é próximo ao número de investidores na bolsa de valores, ou pelos sucessivos escândalos que transformaram em pó os valores de milhões de investidores.
O projeto de lei já aprovado e apenas aguardando a sanção presidencial, com os respectivos e possíveis vetos, será um documento primeiro, consolidador da regulamentação dos ativos, onde centenas de empresas tratavam dos recursos de milhões de pessoas com quase nenhuma proteção, visto que as empresas negociadoras de criptoativos não estão sujeitas nem à regulamentação, nem ao controle do Banco Central ou da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o que esse importante seguimento fique exposto a uma série de riscos, seja para o investidor ou para o controle de valores ilícitos que se escondem sem qualquer possibilidade do poder público identificar eventuais movimentações, sejam elas suspeitas ou não.
Coibir e restringir práticas ilegais, tais como a lavagem de dinheiro, evasão de divisas entre outros ilícitos capitulados já nos diplomas penais, ainda que a maioria absoluta das transações e uso desses criptoativos seja legal, porém para melhor acompanhamento das mutações patrimoniais e proteção dessas milhões de pessoas é preciso maturidade desse mercado, com o mínimo de controle.
Apenas em 2018, foram negociados R$ 6,8 bilhões em moedas virtuais no Brasil, tendo sido criadas 23 novas exchanges (corretoras). Em 2019 já eram 35 empresas agindo livremente, sem a supervisão ou fiscalização dos órgãos do sistema financeiro, como o Banco Central ou as bolsas de valores, números que só crescem.
A Lei em seu Art. 2º traz os conceitos definidores na medida que entente ser
I – Plataforma eletrônica: sistema que conecta pessoas físicas ou jurídicas por meio de sítio na rede mundial de computadores ou de aplicativo;
II – Criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e/ou de tecnologia de registro distribuído, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a bens ou serviços, e que não constitui moeda de curso legal.
III – Exchange de criptoativos: a pessoa jurídica que oferece serviços referentes a operações realizadas com criptoativos em plataforma eletrônica, inclusive intermediação, negociação ou custódia. Sendo que considera-se “intermediação de operações realizadas com criptoativos a disponibilização de ambiente para a realização das operações de compra e venda de criptoativo entre os próprios usuários de seus serviços.
Logo o ambiente transacional e de registro será nos termos da Lei dentro das plataformas de Exchange, e para que essas funcionem foram criados requisitos pela Lei, previstos no seu Art. 3º, vinculando a existência dessas plataformas ao seu registro e a prévia autorização de funcionamento ao Banco Central do Brasil.
A lei estabelece ainda as diretrizes em que as plataformas digitais (lembrando que elas podem também funcionar em espaços físicos, com agências e não necessariamente exclusivas) e que a regulamentação do funcionamento é exclusivo do BC que norteará essa regulamentação nos termos do Art. 4º, que estabelece como parâmetros e diretrizes:
I – Solidez e eficiência das operações realizadas nas plataformas eletrônicas, o que deve fazer que na regulamentação o banco central faça exigências mínimas de capital e garantias, o que pode implicar em reduzi o número de plataformas, o que nem sempre é bom.
II – Promoção da competitividade entre os operadores de criptoativos, se a regulamentação que busque a solidez criar muita dificuldade para as plataformas, certamente a competitividade deve cair, o que deve levar esse mercado para os bancos tradicionais, ao contrário do que esperavam os pioneiros desse mercado.
III – Confiabilidade e qualidade dos serviços, bem como excelência no atendimento às necessidades dos clientes, esses são parâmetros que são construídos desde o início do sistema bancário, são principiológicos, mas que dependem das regras de compliance e da efetividade da fiscalização dessas plataformas, afinal o sistema financeiro é repleto de casos de desvio de finalidade das suas instituições.
IV – Segurança da informação, em especial proteção de ativos e de dados pessoais, existe nesse caso algo bem interessante, afinal as operações por criptoativos estariam protegidas pelo sigilo bancário?
V – Transparência e acesso a informações claras e completas sobre as condições de prestação de serviços, essas são regras que acompanham todos os produtos financeiros oferecidos para o público em geral, resta saber se o Banco Central deve limitar valores de investimento, ou criar figuras únicas como investidos qualificado? A segurança e transparência foram o ponto de partida da tecnologia blockchain.
VI – A adoção de boas práticas de governança e gestão de riscos, lembro que os recentes escândalos da plataforma FTX servem de exemplo da ausência de governança com exercícios de confusão de entidades e de total malversação do capital dos investidores, logo a regulamentação exige o aperfeiçoamento do compliance desse segmento do sistema financeiro.
VII – O estímulo à inovação e à diversidade das tecnologias, como último parâmetro encontramos o elemento principiológico de novas tecnologias, algo presente em diversas regulamentações de sandbox, e que para sair do discurso e ir para efetivação se relaciona diretamente com as limitações que possam ser impostas a essas plataformas, pois quanto maiores forem essas limitações, mais concentrado será esse mercado e menos competitivo e inovador ele será.
No Parágrafo único, desse mesmo dispositivo encontramos a previsão de que o Banco Central do Brasil fomentará a autorregulação do mercado de criptoativos, algo fundamental para o estímulo de novas tecnologias como o blockchain.
A regulação vem na esteira do que já ocorre em diversos países, afinal hoje como os investidores se protegem em meio ao derretimento das criptomoedas, fruto de muitos escândalos e não apenas das mudanças de juros dos bancos centrais?
Para melhor ilustrar a importância da regulamentação e da adoção de medidas de compliance nesse segmento, pense no fato de que se você vendeu um apartamento, por R$100.000,00 no primeiro dia do ano de 2022, e acreditando em obter grandes lucros com investimentos exóticos como o bitcoin, nesse momento a sua carteira estaria no mês passado valendo cerca de R$35.000,00, ou seja você possui cerca de 1/3 do apartamento que vendeu é como se você com o dinheiro da venda, 11 meses após pudesse comprar apenas a sala e o lavabo desse mesmo apartamento.
É exatamente essa a sensação de milhões de pessoas que assumem o risco em investir em diversas criptomoedas.
O maior perfil de risco das criptomoedas, e sua maior volatilidade, multiplicaram as quedas no universo cripto em relação às registradas nos mercados tradicionais. A persistência dos atuais níveis históricos de inflação desencadeou os aumentos das taxas planejados pelos bancos centrais. Esse aperto esperado das condições de financiamento acentua a aversão ao risco
Todo esse movimento de derretimento da poupança popular ocorre em meio a pouca ou quase nenhuma regulamentação dos criptoativos, o que certamente indica os próximos passos, de onde surge ainda que com certo atraso, a lei brasileira que deve ser publicada nos próximos dias.
Nesse universo, que arrebata parte considerável da poupança popular, com a esperança de poupudos lucros o que não faltam são personagens icônicos, muitos deles com palestras disputadas a tapa, ou você acha que esse sucesso na venda de livros de autoajuda é apenas no Brasil? A busca pelo lucro fácil e rápido é da natureza humana, em que peses todas as informações disponíveis para o aprimoramento do compliance dos nossos investimentos.
Na área dos investimentos digitais o que não faltam são histórias de gênios das finanças, como no caso de Sam Bankman Field, que recebeu esses e outros tantos adjetivos como: Criança prodígio, gênio das criptomoedas, monge capitalista, mega-doador democrata, o mais jovem bilionário do mundo, todos títulos construídos na velocidade das paixões por redes sociais, nessa lógica torta da economia da desatenção, onde sobra expectativa e falta regulamentação. O cofundador da FTX, foi o dono de todos os adjetivos criados acima em apenas cinco anos, como pioneiro dos ativos cripto, um negócio que está prestes a sucumbir a uma montanha de dívidas, que colocou olho do furacão uma das maiores plataformas de câmbio digital do mundo e que derrete a cada minuto.
Esse conjunto de regulamentações, espalhadas pelo mundo deve fomentar a entrada de grandes plataformas (big techs) como emissoras dessas moedas, ou seja nesse momento no oceano dos criptoativos andam peixes pequenos pra amadurecer o mercado para os grandes tubarões, até lá todo o modelo regulatório estará desenvolvido e maduro, e ai com maior segurança as Big Techs redesenharão esse mercado.
A crise da FTX foi inesperada, mas não é de forma alguma uma nova situação no mercado cripto, pois quando a alavancagem é usada sem uma gestão adequada de riscos, pode causar liquidações e pânico maciço, levando à falência das instituições, e isso não é novo.
Nestes doze meses, a maior das criptomoedas deflacionado mais de 75%, com perdas em termos de capitalização de 900.000 milhões de dólares. Esse valor chega a US$ 2,1 trilhões se todas as perdas combinadas do mercado cripto forem somadas, o que é bastante significativo, se levarmos e consideração que entre esses milhões de investidores tem pessoas que investiram tudo ou quase tudo que juntaram em suas vidas.
A mudança de ciclo nas políticas monetárias dos bancos centrais, encerrando a era das taxas zero, foi a origem da punção na bolha das criptomoedas apenas um ano e meio atrás.
Em julho, durante uma conferência climática, o bilionário e fundador da Microsoft, Bill Gates, criticou as criptomoedas e NFTs. Ele afirmou que os ativos são 100% baseados na teoria do maior tolo. Para ele, o setor faz parte da ideia de que os investidores às vezes podem ganhar dinheiro comprando ativos supervalorizados se esses ativos puderem ser vendidos a outra pessoa a um preço mais alto. Os ativos estão vivendo uma sequência de desvalorização nos últimos meses.
No momento em que os criptoativos derretem por uma série de motivos, as declarações de Gates, certas ou erradas merecem no mínimo uma reflexão, afinal investimentos em criptoativos, tem movido milhões de brasileiros, que estão colocando suas reservas nesses ativos.
Uma pesquisa da FGV mostra que o investidor brasileiro ainda é conservador e aloca capital principalmente na poupança (37,5%) ou em títulos públicos e renda fixa (21%). Ainda assim, o País se destaca no investimento em criptomoedas, classe de ativos com um nível de risco ainda maior do que a Bolsa de Valores.
Segundo um novo relatório da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que compara o apetite para risco dos investidores do Brasil, da França e do Reino Unido, 14,5% dos investidores brasileiros afirmam investir em criptoativos. O porcentual é quase cinco vezes maior do que na França (3%) e nove vezes superior ao observado entre os ingleses (1,5%). A pesquisa ouviu 595 pessoas, com divisão proporcional entre as três nações. Como já destaquei em outros artigos, o investimento exótico e de elevado risco em criptoativos sofre a influencia de celebridades e outros tipos de influencers o que tem deixado a nossa CVM de olhos e ouvidos bem atentos sobre o necessário compliance nas redes sociais na busca pela poupança dos brasileiros, afinal a mistura entre alto risco, confiança excessiva em influenciadores e a tendência de ligar a rentabilidade passada à futura pode ser uma receita para perder dinheiro quase sempre um suado dinheiro.
(Artigo publicado no site www.jusbrasil.com.br, em 19 de Dezembro de 2022).