CIDADANIA DIGITAL, CONSUMIDOR E A PLATFORMA CONSUMIDOR.GOV.BR

Um maior número de portas de acesso aos seus Direitos, permite uma maturidade maior do cidadão na busca por eles, cercear esse Direito com a simplificação de canais é inconstitucional.

Segundo pesquisas mais recentes, o Brasil e seus cerca de 210 milhões de habitantes, que juntos possuem 450 milhões de dispositivos digitais (computador, notebook, tablet e smartphone) em uso, segundo uma pesquisa realizada pela FGVcia, possui uma das maiores populações do mundo de analfabetos digitais, ainda que seus números pudessem nos levar a uma conclusão diversa.

É sempre de uma ingenuidade atroz a crença de que a liberdade de mercado tudo pode resolver, mais do que um ato de fé historicamente injustificado, essa leitura mais ingênua do que apaixona despreza um fato bem simples, nem sempre o que é bom para o mercado e seus atores é bom para as pessoas, notadamente para as pessoas mais simples.

Acreditar que o mercado vai atrás do consumidor na conformação de novas oportunidades é injustificável por tudo que a história nos mostra. Logo no momento de transformação digital da sociedade acreditar que apenas o mercado pode ser o grande agente da construção da cidadania digital, beira ao extremo da ingenuidade.

A proposta de inclusão digital, comandada pela lógica do mercado, onde nem tudo ajuda ou está interligado com a necessária construção da cidadania digital implica sempre na disponibilização do capital, logo a oferta e a democratização dos recursos sempre vão depender da disponibilização de renda para as pessoas, fora disso o que vemos é desigualdade na oferta de produtos e serviços.

Afinal se a inclusão digital significa democratizar o acesso às tecnologias da informação, permitindo a inserção de todos na sociedade do conhecimento, ter uma máquina de cartão de crédito na mão de um pedinte de rua é um exemplo dessa inclusão? É claro que não, pois o que temos é apenas um gesto de sobrevivência na dura e cruel lógica do mercado, provando que o que é bom para o mercado nem sempre é bom para construção de uma sociedade mais justa.

Logo, estamos diante do desafio de ampliar o acesso aos meios de acessibilidade digital, e a formas de obter aprendizado e consequentemente, a melhores condições de vida e sustento, possibilitando assim que as pessoas tenham meios de exercer seus direitos e desenvolver a plenitude de seus potenciais humanos de forma evolutiva, além é claro da formalização da busca por seus direitos em litígios cada vez mais comuns em uma sociedade onde líderes o tempo todo estimulam as diferenças na posse de posições extremas, seja nas relações de consumo, políticas ou familiares.

Sabidamente três são os requisitos mínimos para fazer acontecer a inclusão digital, que podem ser identificados como instrumentos básicos e não únicos, fundamental na busca e exercício pleno dos nossos direitos:

  1. dispositivo para conexão;
  2. Acesso à rede;
  3. Domínio dessas ferramentas.

Ter o equipamento não basta se a usabilidade dos seus recursos é limitada pela falta de conhecimento, pois apenas o equipamento não garante inclusão.

Devemos também destacar que a acessibilidade vai muito além do universo das pessoas com alguma deficiência, englobando desde aqueles com uma leve dificuldade em enxergar, até idosos e pessoas com baixo letramento (analfabetos e analfabetos funcionais). Por isso é fundamental que o design dos aparelhos tenha o devido cuidado com as pessoas.

A importância disso pode ser identificada quando em 2011, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu o direito ao acesso à internet como um direito fundamental para garantir a livre manifestação de pensamento durante a Primavera Árabe.

Os números do Brasil em dispositivos, representam uma média de dois dispositivos digitais por cada brasileiro, porém apenas 60% dessa população tem acesso a rede, o que ainda nos deixa muito distantes de países desenvolvidos.

Em que pese essas limitações, cerca de 85% dos usuários de internet no Brasil navegam na web todos os dias, em uma média diária de 9h 29 min por dia conectados, cerca de 50% acima da média mundial que é de 6h e 42 min.

O que as pesquisas indicam é que temos três grupos com desempenho levemente inferior aos demais: idosos, mulheres jovens e pessoas de baixa renda. Ao mesmo tempo é preciso que o estado, com políticas, possa ampliar a acessibilidade das classes menos favorecidas para seus serviços mais básicos, como marcação de consultas, informação quanto ao horários de ônibus, controle dos índices de saúde, cursos gratuitos ou com preços acessíveis para essa camada da população mais idosa que está em casa e pode realizar atualizações através de cursos.

Estar desconectado do mundo pode ser muitas vezes um alívio para o espírito, mas pode também deixar as pessoas mais simples desconectadas de muito conteúdo de qualidade e de serviços gratuitos.

O Brasil precisa saber se é mais importante ter uma urna com identificação biométrica do que acesso para marcação de consultas.

A não inclusão digital dessas categorias é o mesmo que condená-las a miséria, o que além de desumano é pouco inteligente para uma sociedade de consumo que precisa de mais pessoas integradas a rede. Exercer os direitos e cumprir os deveres são os princípios fundamentais da vida em sociedade de todo cidadão, seja qual for a nacionalidade, etnia ou crença. Isso significa a possibilidade de usufruir de recursos, bens e processos naturais, sociais e culturais, bem como a necessidade de respeitar as leis e as normas que regem tal utilização. E, no mundo atual, essas ações incluem a prática da cidadania digital. Com o novo cenário global, marcado pelo advento de uma série de tecnologias que vêm possibilitando o estabelecimento de diferentes formas de interação e práticas sociais, é essencial que o cidadão seja capaz de agir de modo a exercer direitos e cumprir deveres. E essa capacidade nem sempre é fácil de desenvolver, uma vez que muitos de nós nem sequer param para pensar nas mudanças que a transformação digital trouxe. Nessa perspectiva, é muito importante conhecer as principais características, desdobramentos e desafios da cidadania digital, para que seja possível refletir sobre eles e, então, aproveitar apenas os benefícios gerados pelo uso das tecnologias. Quando pensamos no conceito de cidadania, somos capazes de inferir, ao menos de modo geral, qual a lógica básica da cidadania digital. Por isso, vale lembrar que a cidadania consiste na prática, por parte do indivíduo, dos direitos e deveres sociais, civis e políticos estabelecidos na constituição de um país. Direito e dever se complementam, já que o exercício do primeiro por um cidadão implica no cumprimento do segundo por outro.

Desse modo, a partir de tal ótica, podemos definir a cidadania digital como a utilização apropriada e responsável dos recursos tecnológicos.

Considerando que o cidadão digital é aquele que usufrui dos seus direitos e cumpre os seus deveres quando desenvolve algum tipo de atividade em ambiente digital, é preciso que ele saiba o que pode e o que não tem permissão para fazer.

Em 2015, foi criada a plataforma consumidor.gov.br um site na internet criado por meio do Decreto n.º 8.573/15, para ser um sistema alternativo de solução de conflitos de consumo e estimular a autocomposição entre consumidores e fornecedores, ou seja tendo um meio, o governo promoveu um lugar para o exercício da cidadania digital na apresentação dos conflitos consumeristas. O site, gerenciado pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), ligado ao Ministério da Justiça, integrando o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, junto com as agências reguladoras e os fornecedores. O mecanismo visa a otimizar a elaboração e execução de políticas públicas de defesa dos consumidores e incentivar a competitividade no mercado pela melhoria da qualidade de produtos, serviços e do atendimento ao consumidor, nos termos explicativos do site.

Porém, recentemente, de forma perigosa, tem surgido uma corrente, que defende o condicionamento da ação judicial para resolução de um conflito de consumo ao prévio registro de reclamação na plataforma consumidor.gov.br, caso contrário, a ação deveria ser extinta sem resolução de mérito por falta de interesse processual, o que representa um sério risco ao Direito Constitucional de petição, ainda que travestido de simplificação do processo litigioso.

Magna Carta ampliou o acesso a justiça para todos, e a justiça só se faz presente em um sistema multiportas.

Lembro que na elaboração do Código de Defesa do Consumidor, seguiu-se no mesmo sentido, determinando a criação dos juizados especiais. Com isso, observamos que, além de munir o cidadão de direitos, a Constituição também ofereceu as ferramentas para exercê-los.

Lembro que o artigo 17 do Código de Processo Civil define os requisitos para a postulação em juízo, quais sejam, o interesse e a legitimidade. Excetuando-se a legitimidade que não está sob ataque, o interesse divide-se doutrinariamente em dois elementos, o interesse-necessidade e o interesse-adequação. O primeiro elemento, aqui em discussão, é justamente a necessidade do postulante de pedir um provimento jurisdicional, é a justificativa para requerer ao Estado a sua intervenção para a solução de um direito violado. Para isso, a parte deve demonstrar, na peça de manejo, os fatos, os fundamentos jurídicos, as provas que possui, etc., e o juiz há de analisar, como desde os primórdios do Poder Judiciário no País, devendo admitir ou não aquela ação.

Em outras palavras, a análise do interesse-necessidade, como conhecemos, já é feita pelo magistrado, no mínimo, desde 1939, quando do primeiro Código de Processo Civil brasileiro, e não há necessidade alguma de reinterpretá-lo restritivamente, até porque encontra obstáculo constitucional.

A simplificação e automação do direito de peticionar, não pode ser feita através da redução de canais de pedir, sob pena de prejuízo a essa parcela significativa da população.

É evidente que a busca da prestação jurisdicional para resolução de um defeito ou vício do produto ou serviço já é um árduo caminho, pela burocracia e pela morosidade do sistema de justiça. A via do consumidor.gov.br é, e deve continuar sendo, uma outra alternativa a esse caminho, não um caminho prévio obrigatório e único.

Constituição de 1988 é clara em seu artigo 5.ºXXXV: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Logo a plataforma consumidor.gov.br é, deve sim ser uma importante porta, mas não a única, estimular o seu uso é fundamental, mas não com o pretexto de fazê-lo como único caminho.

Lembro que entre nós se faz presente o “analfebetismo digital” ao menos para uma parcela significativa. O termo foi criado pelo valoroso, Gilberto Dimenstein, como uma nova categoria de analfabetos funcionais, o “analfabeto digital”.

Aqueles que mesmo com acesso a tecnologia, não o sabem operar, com alguns sistemas básicos que permitem, com grande velocidade e eficiência, digitar textos, fazer cálculos, trabalhar com imagens e gráficos, elaborar planilhas de contas, etc., etc. e acabam utilizando seus smarphones por exemplo, apenas para ligações e trocas de mensagem.

O Número de Analfabetos no Brasil é preocupante cerca de 11 milhões de brasileiros são analfabetos funcionais segundo o IBGE, o equivalente a população inteira de Portugal.

O simples acesso ao telefone celular, não retira a pessoa do conceito de “analfabeto digital”, uma boa referência pode ser extraída do número de brasileiros que durante a pandemia estavam na lista de desbancarizados, e não conseguiam baixar o aplicativo para cadastro e recebimento dos auxílios públicos.

Analfabetos digitais não usufruem da sua cidadania, e esse novo conceito, “cidadania digital”, ganha nova dimensão no momento de total transformação digital da sociedade.

Mike Ribble, foi quem primeiro definiu o conceito de cidadania digital e os elementos que a compõe, lembrando que eles não são restritos somente aos jovens. Logo, a educação incorporou os conceitos de cidadania digital como se fosse único e exclusivamente um direito para jovens, para um processo de formação.

São nove os elementos da cidadania digital de acordo com o conceito de Mike Ribble.

Acesso digital: inclusão eletrônica e participação plena na sociedade.

Comércio digital: compra e venda de produtos e serviços online.

Comunicação digital: troca de informações online.

Alfabetização digital: capacidade de saber como e quando usar a tecnologia digital.

Etiqueta digital: padrão de conduta esperado por todos que usam a internet.

Lei digital: direitos e restrições legais que governam o uso da tecnologia.

Direito e Responsabilidade digital: privilégios, liberdades e comprometimentos estendidos a todos os usuários online.

Saúde e bem-estar digital: bem-estar físico e emocional ligados ao uso da tecnologia.

Segurança digital: precauções que os usuários da internet devem tomar para garantir a segurança pessoal e da sua rede de contatos.

É preciso dar um salto, para essa inclusão de pessoas (consumidores), como ponto de partida de se multiplicar em pouco tempo o número de profissionais que têm as habilidades para enfrentar os parâmetros tecnológicos e formatos da nova economia.

É essencial entrar em um processo de transformação digital como um dever associado à sustentabilidade e a tarefa mais imediata é a alfabetização digital, pois ela a transformação digital do setor público, vai permitir se ampliar as horas de estudos e treinamento à distância reposicionando as pessoas no mercado de trabalho.

Artigo publicado originalmente no site www.jusbrasil.com.br, em 16 de junho de 2023.

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