O otimismo que nos embala no caminhar permanente da vida é o mesmo que nos permite olhar a vida sempre na sua melhor face, nos conduzindo muitas vezes pelo caminho negacionista dos riscos de qualquer negócio, seja ele ligado ou não ao universo digital. Não se trata de ser otimista ou pessimista, mas de identificar os números e entender tendências, e de saber se o vento sopra favorável ou não.
Com juros sendo elevados, o mercado começa a sentir a dificuldade na captação do dinheiro fácil, afinal se antes as startups poderiam contar com fundos de investimentos, investidores anjos, a elevação do juro e a possibilidade uma segurança maior no investimento de títulos públicos, fez com que os investimentos de riscos fossem ligeiramente alocados, ou seja, a mistura de inflação alta com taxa de juros elevados faz com que o mercado fuja do risco de investimentos sem a certeza do resultado, o que atinge em cheio as startups, ao mesmo tempo se a pandemia acelerou a transformação digital de muitos setores a forceps, com a volta das pessoas ao seu local de trabalho muitas o desenho muda novamente para mudanças um pouco menos aceleradas.
É o fim do boom tecnológico, ou apenas uma parada? Bem, a transformação digital é uma tendência irreversível, ou melhor uma estrada obrigatória para todos, que vão nela caminhar com maior ou menor eficiência, e nessa tentativa muitos negócios vão ficar pelo caminho, seja por terem entrado tarde, seja por não terem escolhidos os melhores quadros para comandar suas mudanças ou simplesmente pelo fato de que o seu negócio definhou sem futuro algum.
Nas últimas semanas, acompanhamos anúncios de diversas startups, inclusive grandes unicórnios, como Loft, Quintoandar, Ebanx, entre outros, anunciando demissões em massa no País. O que tudo isso significa? Estaríamos assistindo ao estouro de uma nova bolha, como nos anos 2000? Até onde essa onda vai?
Primeiro, é preciso entender que esse é um fenômeno global, e não brasileiro. Empresas de tecnologia do mundo todo estão demitindo. A causa é, basicamente, uma mudança brusca na macroeconomia global pós-covid, agravada pela guerra da Ucrânia, que aumentou as taxas de juros globalmente e reduziu o apetite por risco dos investidores, atingindo fortemente a atratividade da indústria de venture capital.
Com menos capital disponível e cenário econômico incerto, levantar novas rodadas de capital fica mais difícil. Isso derruba o próprio valor das empresas, especialmente daquelas que acabaram de captar muito dinheiro com avaliação muito alta: voltar a captar pode significar encolher valor. As startups, acostumadas com um paradigma que priorizava crescimento ao lucro, alavancado por muito capital disponível, precisam revisar planos e ajustar contas, por isso diariamente as notícias se repetem de novas demissões para ajuste do plano de negócios.
A realidade do mercado de capitais e de tecnologia hoje é bastante diferente. O dinheiro também não secou completamente: está mais seletivo.
Enquanto muitas empresas demitem, há também muitas outras contratando. As oportunidades que existiam no País para geração de valor com inovações tecnológicas continuam aqui. Talvez elas estivessem sendo vistas de maneira excessivamente otimista, e provavelmente são vistas com pessimismo excessivo agora.
Certamente acabou a farra do dinheiro fácil e a paciência dos investidores, com a oferta de juros públicos elevados ficou bem menor.
Nesse momento em que o mundo majoritariamente ficou mais pobre, o primeiro resultado é o dinheiro ficar mais caro e consequentemente mais seletivo e se ele não está mais sobrando as empresas colocam suas tesouras pra funcionar apostando em apresentar resultados bem mais rápido.
Empresas como a Kavak(startup de carros usados) a maior startup da América Latina (avaliada em US$ 8,7 bilhões) realizou apenas no Brasil nos dois últimos meses cerca de 300 demissões, todos cortes com o mesmo pretexto, a procura de mais eficiência e produtividade procurando fazer mais com menos.
As demissões das startups não escolhem segmento, como no caso da fintech, Ebanx, startup de sistemas de pagamentos internacionais, que demitiu recentemente 340 funcionários, o que representa 20% dos seus quadros, com a mesma justificativa “manter o compromisso com sua sustentabilidade e crescimento, seguindo na missão de gerar acesso entre consumidores e empresas globais”, nos dizeres da nota pública. O corte na fintech tem um peso significativo para o setor, pois a empresa é uma referência como “unicórnio” (startup avaliada em US$ 1 bilhão) nacional com a maior entrada no mercado internacional entre os afetados, o que se repetiu em seis gigantes nacionais de tecnologia: Quintoandar, Loft, Facily, Olist, Vtex e Mercado Bitcoin que realizaram cortes enormes nos últimos dois meses.
Essa combinação de fim do dinheiro fácil somada a uma redução na velocidade da transformação digital acaba criando esse cenário que eu prefiro chamar de freio de arrumação, a adequação entre expectativa e realidade.
Em alguns casos, como o Facebook (agora Meta), a crise vem de uma saturação do mercado combinada com um cansaço do modelo. Em outros, como a Netflix, ela vem como resultado de sinais que parecem indicar uma saturação que não necessariamente ocorreu ou como forma de lembrar a empresa que ela precisa continuar a manter seu caráter disruptivo em relação aos novos entrantes no negócio de streaming, mas estamos falando de algumas das maiores quedas da história do mercado, o que não é dizer pouco.
O fato é que ao contrário do que pode imaginar o conhecimento popular, a vida de uma startup, assim como diversos outros negócios na economia tradicional, nunca foi fácil, pois de igual forma startups também fecham suas portas, ou acreditamos que todo amigo que cria uma startup é um novo Bill Gates ou um Steve Jobs? Claro que não, pois os índices de fechamento das startups não é muito diferente das empresas da velha economia, e a sua dificuldade de crédito sempre existiu, porém agora aumentou tanto para médias como para grandes empresas. Em recente trabalho a Associação Brasileira de Startups (ABStartups) divulgou em estudo conduzido em parceria com o Sebrae que analisa o ecossistema de startups no Brasil, que 73% das startups brasileiras nunca receberam nenhum tipo de investimento, e logo isso serve de medida da dificuldade.
Infelizmente os investidores anjos, são mais populares nos livros, revistas e palestras do que na rotina de nossas startups.
Logo o céu e o inferno fazem parte da rotina das nossas startups e pelas estatísticas pra elas o inferno é sempre um lugar bem mais conhecido, num país onde empreender nunca foi fácil.