ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E SEUS DADOS, É PRECISO TER MEDO?

Ao sair de casa, as câmeras de segurança da rua registram minha saída, no caminho os semáforos inteligentes com radares que registram a placa do veículo vão anotando o tempo médio de viagem e o trajeto que faço todos os dias, bem como os eventuais desvios desse caminho, estaciono o carro e na rua as câmaras de segurança da rua fazem meu reconhecimento facial e assim vão sendo feitos diversos registros no trajeto.

Não é uma obra de ficção mas a rotina das maiores cidades do mundo, uma profusão de registros digitais públicos de nossa rotina, em maior ou menor grau, dependendo de cada cidade.

Uma rotina de registros digitais de uma vida cada dia mais digitalizada e precisa, são registros da nossa intimidade, portanto, devem ser protegidos, independentemente do diploma normativo.

A rotina descrita acima ilustra exatamente o que estamos vendo na proposta de inclusão digital das nossas cidades cada dia mais vigiadas, o estado com seu braço na segurança, na saúde pública e na educação, possui a cada dia mais informações sobre seus cidadãos e logo o cuidado e a forma com que esses dados são tratados fazem a trajetória da nossa inclusão digital, em maior ou menor grau, uma relação que precisa ser de duas mãos.

Por isso estamos diante do desafio de ampliar o acesso aos meios de acessibilidade digital e a formas de obter aprendizado e consequentemente, a melhores condições de vida e sustento, possibilitando assim que as pessoas tenham meios de exercer seus direitos e desenvolver a plenitude de seus potenciais humanos de forma evolutiva, ao mesmo tempo em que essas cidades vigilantes precisam de seus registros para dar melhores condições de tráfego, de segurança e de melhor oferta dos serviços públicos.

Três são os requisitos mínimos para fazer acontecer a inclusão digital, que podem ser identificados como instrumentos básicos e não únicos:

Dispositivo para conexão;
Acesso à rede; e
Domínio dessas ferramentas.

A importância disso pode ser identificada quando em 2011, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu o direito ao acesso à internet como um direito fundamental para garantir a livre manifestação de pensamento durante a Primavera Árabe.

No Brasil possuímos cerca de 420 milhões de aparelhos digitais ativos, incluindo nesse número, smartphones, computadores, notebooks e tablets. O que representa uma média de dois dispositivos digitais por cada brasileiro, porém, apenas 60% dessa população tem acesso a rede, o que ainda nos deixa muito distantes de países desenvolvidos.

Em que pese essas limitações, cerca de 85% dos usuários de internet no Brasil navegam na web todos os dias, em uma média diária de 9h 29 min por dia conectados, cerca de 50% acima da média mundial que é de 6h e 42 min.

O que as pesquisas indicam é que temos três grupos com desempenho levemente inferior aos demais: idosos, mulheres jovens e pessoas de baixa renda, o que justifica o que pretendemos com esse artigo.

Ao mesmo tempo é preciso que o estado, com políticas, possa ampliar a acessibilidade das classes menos favorecidas para seus serviços mais básicos, como marcação de consultas, informação quanto ao horários de ônibus, controle dos índices de saúde, cursos gratuitos ou com preços acessíveis para essa camada da população mais idosa que está em casa e pode realizar atualizações através de cursos.

Estar desconectado do mundo pode ser muitas vezes um alívio para o espírito, mas pode também deixar as pessoas mais simples desconectadas de muito conteúdo de qualidade e de serviços gratuitos.

O Brasil precisa saber se é mais importante ter uma urna com identificação biométrica do que acesso para marcação de consultas. Não existe lógica na priorização dos investimentos públicos de tecnologia, onde os poderes certamente não se conversam.

Na gestão e na governança dos nossos dados disponíveis a administração pública precisa ampliar a interoperabilidade dos sistemas e das bases, evitando a duplicidade e repetição de registro.

É preciso o compartilhamento dos entes da administração pública direta de sistemas que evitem a sobreposição de custos e que construa normas de segurança validadas para todos.

É preciso um filtro no registro apenas dos dados que forem realmente necessários para a administração e com acesso seguro e restrito às pessoas mais indicadas para fazer seu uso, eliminando o quanto antes as informações desnecessárias para a prestação de serviços.

Em comunidades pequenas e avançadas, como em Singapura, o sistema de uso de dados chamado Trace Together vem funcionando bem, uma vez que o sistema geracional, por trazer comunidades maiores e com a ajuda de instituições como o MIT, estão se voltando para aplicações mistas que utilizam a geolocalização para segmentar ao menos a área que uma pessoa esteve e assim elevar eficiência de troca de identificadores, afinal, identifica-se se essa pessoa esteve em uma área com alta contaminação, acompanhando o movimento dela para que o software possa identificar qual o maior risco que ela pode oferecer para as regiões em que circula.

Ao mesmo tempo, essa nova dinâmica gera uma discussão nova: Quem vai cuidar desses dados de movimentação? Na União Européia e em diversos países existem muitas decisões judiciais que criam limites a isso.

Há ainda o desafio tecnológico de fazer com que as pessoas mais simples saibam ativar a tecnologia, bem como a questão prática sobre o consumo de bateria, que pode intensificar com a utilização dos recursos, como o Bluetooth por exemplo.

O fato é que com grande fluxo de troca de informações via internet o diálogo desse sistema deve ocorrer de forma integrada. E como fazer?

São diversos entes desejando seus dados, Estados, Municípios, União Federal e outros, trabalhando em cima disso sem a menor interoperabilidade dentro desses sistemas.

A interoperabilidade é essa capacidade de comunicação entre sistemas de forma eficaz que garante a integridade dos dados e os resultados almejados por esses governos.

Para que isso de fato ocorra é necessário que os padrões de sistemas sejam abertos e flexíveis, mas principalmente no caso de dados, tenham o maior cuidado possível no momento de tratamento dessas informações, conforme inclusive preceitua a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira.

São muitas as vantagens dessa interoperabilidade nos entes federativos, como a redução de custos, análises estratégicas na luta contra a pandemia, aumento da segurança nas cidades, decisões governamentais mais rápidas, ampliação da produtividade e flexibilização na resolução desses problemas. Mas quem entre os entes federativos está se empenhando para que haja essa interoperabilidade e a consequente proteção dos seus dados? Este é o desafio para os governos na atualidade.

A Lei Geral de Proteção dos dados cria a obrigação para que Administrações Públicas protejam os dados das pessoas, o foco, portanto, é a pessoa física, logo os cidadãos independente da relação que possuam também são abrangidos pela LGPD.

Em cada espaço, cada esquina, cada entrada de condomínio e casa nossas imagens são capturadas por meio de câmeras de vigilância que não tinham tanto impacto em nossas vidas até o momento em que se começou a usar softwares de reconhecimento facial, que cada dia que passa vem sendo utilizados com maior frequência. Um bom exemplo é o questionamento sobre o quanto da nossa privacidade os drones podem retirar se tiverem o software de reconhecimento facial?

Com o que podemos trabalhar então? De um lado a privacidade e de outro o fortalecimento da segurança através do reconhecimento de identidade. No caso dos drones, além da proliferação das máquinas que podem fazer a captura e reconhecimento das imagens nós não estaríamos banalizando a profusão de cenas privadas nesse cenário público?

A quem interessa ter conhecimento sobre um casal de namorados no espaço público? Até que ponto a invasão do espaço público pela intimidade não esvazia as questões coletivas fazendo com que o foco se volte para a vida individual?

Alcançar a visibilidade parece ter se tornado não apenas um desejo mas uma obrigação que é utilizada para confirmar sua existência perante ao outro. Até que ponto esse desejo de espionar e de expor não tem invadido áreas da vida coletiva e dessa maneira reconfigurando a privacidade e as relações sociais?

Nem sempre teremos respostas para este debate mas é fundamental identificar as consequências destes avanços por meio dessas tecnologias. Destacamos que o avanço com novos dispositivos também implica em perda de privacidade.

De que maneira a captura de dados pode ser feita em uma escola, por exemplo? Esses dados devem ser 100% anonimizados?

Quem garante a nossa segurança? Do caso fortuito ao namoro por ímpeto. Esse é o grande desafio, ponderar a segurança com a privacidade na tecnologia.

Recentemente o governo atualizou o decreto 10.046 de 2019, que regulamenta o uso de dados das pessoas pela administração pública, via de regra, o compartilhamento dos seus dados pela Administração Pública Federal direta e indireta com os demais poderes e entre si, seguem as seguintes diretrizes:

I – simplificar a oferta de serviços públicos;
II – orientar e otimizar a formulação, a implementação, a avaliação e o monitoramento de políticas públicas;
III – possibilitar a análise das condições de acesso e manutenção de benefícios sociais e fiscais;
IV – promover a melhoria da qualidade e da fidedignidade dos dados custodiados pela administração pública federal; e
V – aumentar a qualidade e a eficiência das operações internas da administração pública federal.

Ou seja, o uso dos seus dados é restrito a essa finalidade, que ainda que possa parecer muito amplo e vago, opera sobre a característica de ato administrativo de natureza vinculada e como tal, deixa muito pouco espaço para o poder discricionário do intérprete, sob o risco do uso, por parte do servidor, de uma interpretação alargada desse dispositivo, ser conduta prevista com a punição administrativa.

O fato é que com a publicação da lei Geral de Proteção de Dados, os dados sensíveis passaram a ter seu uso limitado nos termos da Lei, e o decreto que trata sobre a governança desses dados amplia esses limites.

A história da relação da privacidade das pessoas com o Estado é também a progressão da evolução do Estado e dos Direitos dos seus cidadãos, se antes a privacidade era apenas para classes mais favorecidas, nos tempos atuais ela tem o mesmo peso para qualquer cidadão, independentemente de sua classe social.

Se antes o sigilo bancário e fiscal eram as referências da guarda do sigilo funcional, hoje com a lei Geral de Proteção dos dados, o corte que precisa ser feito é bem distinto, pois nenhum dado que não esteja previsto em lei por decorrência da atividade administrativa, de natureza vinculante, pode ser compartilhado sem motivação e sem a manifestação expressa do titular dos dados.

Um levantamento reproduzido na obra de Daniel Bucar, em sua obra sobre “A Proteção de Dados da Pessoa Humana na Administração Pública” pode dar ideia de como esse assunto é novo. Visto que “Nos primeiros vinte anos de vigência da CRFB/1988, a estatística jurisprudencial relativa a julgados proferidos pelo STF e pelo STJ, no que toca a feitos em que são invocados os vocábulos privacidade e intimidade, demonstra um complexo tratamento desses termos, que são utilizados tanto para a tutela do sigilo bancário como para fundamentar a condenação ao pagamento de indenização por danos morais experimentados por criança que teve sua imagem divulgada em cadernos escolares confeccionados por ente municipal e distribuídos em sua rede de ensino público”. Segundo esse estudo: 51% dos julgados versam, de alguma forma, acerca de situações de sigilo patrimonial (bancário, fiscal e contratual), 20% sobre tratamento de dados pessoais não exclusivamente patrimoniais, 16% quanto à proteção da comunicação de dados (por meio da correspondência e do serviço telefônico) e o restante (13%) sobre a obtenção de prova ilícita e divulgação indevida de imagens e dados pessoais por qualquer espécie de mídia.

Esse quadro é um retrato de 1988 a 2008, ou seja, a discussão sobre a matéria é nova, o que nos permite concluir que a doutrina tem muito por produzir.

As novas tecnologias ampliaram a base de dados da administração, e logo, o cuidado na gestão e governança deles é fundamental.

Questões novas surgem como a “interoperabilidade” que é a capacidade de diversos sistemas e organizações trabalharem em conjunto, de modo a garantir que pessoas, organizações e sistemas computacionais troquem dados.
Considerando as diversas áreas da Administração é um desafio de eficiência e governança estabelecer como dividir sem comprometer a integridade desses dados na maioria das vezes de natureza sensível.

É uma regulamentação extensa e aqui traçamos apenas algumas linhas iniciais, pois, o que deve ser destacado é que o direito de manter o controle das próprias informações e de determinar livremente como construir a própria esfera privada que pertence ao titular dos dados e que a construção da cidadania se dá com essa linha clara entre o interesse público previsto em lei e o titular dos dados sensíveis, onde a mera vontade do administrador pode muitas vezes ultrapassar a linha entre o privado protegido pela lei e o dado efetivamente necessário.

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