A GUERRA POR MEMÓRIA

O recente bloqueio a Ilha de Taiwan, onde se situa o maior fabricante de chips do mundo, ameaça a chegada de semicondutores a inúmeros fabricantes do planeta, que tornou o mundo refém em maior ou menor grau dos seus chips.

Como a maior fabricante de chips personalizado, com quase 60% da participação global, a TSMC é um player insubstituível, no curto e médio prazo. Os chips fabricados pela multinacional taiwanesa, cujos clientes incluem gigantes como Apple ou Qualcomm, são essenciais para a operação de carros, celulares, computadores, drones, mísseis e até veículos de combate.

Mas como isso aconteceu? Como o mundo pode ter ficado refém de um fornecedor?

Lembro que o pioneiro da computação Alan Turing provou que, se um computador é capaz de executar um determinado conjunto mínimo de operações, então, com tempo e memória suficientes, ele pode ser programado para fazer qualquer coisa que qualquer outro computador faz, logo muitas décadas antes Turing anunciava o gargalo da transformação digital, a sua memória.

Como na metáfora de Hans Moravec, computadores são máquinas universais, seu potencial se estende uniformemente por uma variedade ilimitada de tarefas, tente imaginar nas tarefas do seu dia a dia quantas dessas tarefas sofrem maior ou menor intervenção de algum dispositivo eletrônico portador de um chip de memória? Para Moravec os potenciais humanos, por outro lado, são fortes em áreas há muito tempo importantes para a sobrevivência, mas fracas em coisas distantes. Imagine uma “paisagem de competência humana”, com planícies com rótulos como “aritmética” e “memorização mecânica”, contrafortes como “prova de teoremas” e “jogo de xadrez” e picos de montanhas altos denominados “locomoção”, “coordenação óculo-manual” e “interação social”. Melhorar o desempenho do computador é como a água inundando a paisagem lentamente. Há meio século, começou a afogar as planícies, expulsando calculadoras humanas e arquivistas, mas deixando a maioria de nós secos. Agora o dilúvio chegou ao contraforte e nossos postos avançados estão contemplando uma retirada. Nós nos sentimos seguros em nossos picos, mas, no ritmo atual, eles também serão submersos em mais meio século.” Nessa “paisagem de competência humana”, de Hans Moravec, na qual a elevação representa dificuldade para computadores (ampliação de memória), e o aumento do nível do mar representa o que os computadores conseguem fazer. Como percebemos o nível do mar continua subindo, e logo as pessoas e máquinas não digitalizadas continuam sendo substituídas, e pra isso o que essas novas máquinas mais precisam? Chips portadores de maiores memórias.

O que a informática fez é a informação se movendo em registro com o avançar do tempo a cada dia em materiais diferentes, matéria e energia se movendo, transportando pelas vias construídas por softwares para dar comandos ao material incorporado a ação, o intangível no comando do tangível.

Numa boa analogia feita por Max Tegmark no seu livro já citado “Podemos, portanto, considerar os bits como átomos de informação, o menor pedaço indivisível de informação, que pode ser combinado para formar qualquer informação. Por exemplo, apenas digitei a palavra “word”, e meu laptop a representou em sua memória como a sequência de quatro números “119 111 114 100”, armazenando cada um desses números como 8 bits (representa cada letra minúscula por um número de 96 mais a sua ordem no alfabeto). Assim que eu apertei a tecla “W” no meu teclado, meu laptop exibiu uma imagem visual de um “W” na minha tela, e essa imagem também é representada por bits: 32 bits especificam a cor de cada um dos milhões de pixels da tela.”

Com o passar do tempo e a evolução da forma física para armazenar memória, disquetes, dvs, pen drives, muda o material de registro, mas o que se registra são bits, onde cada bit corresponde à existência ou não de um ponto microscópico em um determinado ponto da superfície plástica. Em um disco rígido, cada bit corresponde a um ponto na superfície sendo magnetizado de uma entre duas maneiras. Na memória de trabalho do meu laptop, cada bit corresponde às posições de certos elétrons, determinando se um dispositivo chamado micro capacitor está carregado. Alguns tipos de bits também são convenientes para o transporte, mesmo à velocidade da luz: por exemplo, em uma fibra óptica que transmite seu e-mail, cada bit corresponde a um feixe de laser que fica forte ou fraco em um determinado momento, muda o formato que avança ao ganhar capacidade, velocidade de leitura e transmissão, mas o que se transporta, registra e armazena são bits.

Modificam-se os dispositivos de transporte de dados e armazenagem sem alterações no software, e em uma velocidade espantosa, pois apenas nas últimas seis décadas, o preço da memória do computador caiu pela metade mais ou menos a cada dois anos. Os discos rígidos ficaram 100 milhões de vezes mais baratos, e as memórias mais rápidas, muito mais úteis para a computação do que o mero armazenamento, tornaram-se impressionantes 10 trilhões de vezes mais baratas, tente imaginar se outros dos produtos que você adquiriu tivessem nesse período o mesmo desconto?

O que ocorreu na ilha levou Taipei denunciar que os exercícios armados ao redor do seu território equivalem a “um bloqueio marítimo e aéreo”. Isso impede que gigantes como a TSMC acessem componentes, matérias-primas e ferramentas de outros países essenciais para desenvolver seus processadores avançados.

A dependência da empresa é tão grande que uma interrupção no fornecimento de processadores de Taiwan aprofundaria a crise que o setor de semicondutores vem enfrentando há dois anos, levando ao colapso de muitas indústrias. O comissário europeu Thierry Breton resumiu em fevereiro: “Se Taiwan não pudesse exportar mais, quase todas as fábricas do mundo parariam em três semanas”.

A Micron e a Qualcomm, dois dos maiores grupos de semicondutores dos EUA, abrirão novas fábricas no país, que está tentando reduzir sua dependência da Ásia em um momento de crescente tensão com a China.

Com o espectro de uma invasão pairando sobre Taiwan, o maior produtor de semicondutores do mundo, os Estados Unidos estão apostando em repatriar a produção para garantir sua autonomia estratégica em caso de conflito, ou seja investimento para expansão da fabricação de chips que ampliem a memória dos nossos dispositivos.

Dois dos maiores grupos de semicondutores norte-americanos, Micron e Qualcomm, anunciaram investimentos no valor de 44,2 bilhões de dólares (43,24 bilhões de euros), como relatado pela Casa Branca, que vinculou as decisões à lei aprovada no Congresso e promovida pelo presidente Joe Biden, para subsidiar a fabricação de processadores em solo americano.

O projeto de lei, conhecido como lei chips, contempla um investimento total de 280.000 milhões de dólares, dos quais 52,700 milhões visam promover a construção e expansão de fábricas nacionais de semicondutores com subsídios e créditos fiscais.

Em que pese todo esse investimento a estimativa é de que a participação dos EUA no mercado de produção de chips de memória de 2% para 10%, o que parece ser muito otimista, pois o resto do mundo amplia consideravelmente o seu investimento na fabricação de chips.

Uma computação é a transformação de um estado de memória em outro. Em outras palavras, uma computação pega informações e as transforma, implementando o que os matemáticos chamam de função, logo amplia-se consideravelmente os dispositivos rotineiros que incorporam chips de memória, bem como diariamente os dispositivos que já usamos tem sua capacidade de memória expandida, o que representa sempre novos chips de memória, numa corrida permanente por capacidade de memória.

Ray Kurzweil chama esse fenômeno de duplicação persistente de “lei dos retornos acelerados”. Todos os exemplos de duplicação persistente que conheço na natureza têm a mesma causa fundamental, e esse exemplo tecnológico não é exceção: um passo cria o seguinte. Por exemplo, você mesmo passou por um crescimento exponencial logo após sua concepção: cada uma de suas células se dividiu e deu origem a cerca de duas células diariamente, fazendo com que seu número total de células aumentasse dia após dia: 1, 2, 4, 8, 16 e assim por diante. De acordo com a teoria científica mais popular de nossas origens cósmicas, conhecida como “inflação”, nosso Universo bebê cresceu exponencialmente como você, dobrando repetidamente seu tamanho em intervalos regulares até que um grão muito menor e mais leve que um átomo se tornasse mais massivo do que todas as galáxias que já vimos com nossos telescópios, como destaca Max Tegmark em obra citada.

Por outro lado, Ray Kurzweil aponta que a lei de Moore envolve não o primeiro, mas o quinto paradigma tecnológico para gerar crescimento exponencial na computação, onde sempre que uma tecnologia para de melhorar, nós a substituímos por uma ainda melhor.

Nessa guerra pela expansão e domínio das memórias em nossos dispositivos, o primeiro grande round, ocorreu em setembro de 2020, quando fabricantes que usam equipamentos ou tecnologia de propriedade norte-americana precisarão solicitar uma licença antes de fornecer produtos à gigante chinesa de telefonia Huawei, responsável por cerca de 14% da receita da TSMC, o que já atingiu de imediato a empresa de Taiwan.

Por não ter produtos de consumo final como Intel e Samsung a TSMC se diferenciou das demais fabricantes de semicondutores como a Intel e a Samsung, que por hábito acabam reservando os melhores chips a seus próprios produtos.

Para termos ideia de alguns números dessa guerra o governo chinês planeja investir, nos próximos cinco anos, 1,4 trilhão de dólares, em infraestrutura e inovação tecnológica de projetos que vão desde a construção de redes sem fio 5G a softwares de inteligência artificial (IA) para a automatização de fábricas e direção automática, mesmo com os investimentos chineses, a TSMC continua sendo a maior fabricante de chips por contrato do mundo, e a China ainda ocupa apenas a quinta colocação nesse estratégico mercado. Ao mesmo tempo enquanto a TSMC fabrica produtos de ponta com a tecnologia de 5 nanômetros, a SMIC pode estar atrasada quase uma década. Só sua última geração de chips de 14 nanômetros está cerca de quatro anos atrás da Qualcomm e da Intel, o que na guerra tecnológica parece ser uma eternidade.

A falta de chips atinge toda indústria no mundo, e antes que um delirante crie uma nova teoria da conspiração colocando os chineses como culpado, alerto que a falta atinge toda indústria eletroeletrônica do mundo, e isso inclui a China.

Lembro que estamos falando de uma indústria que é muito geograficamente fragmentada entre suas três fases diferentes (design, fabricação e montagem/teste), com enormes interdependências e diferentes fatores críticos. Se na fase de projeto o software e as patentes prevalecerem, e está principalmente nas mãos de empresas norte-americanas e europeias; na fase de fabricação, o mais crítico é a produção de máquinas fotolitografia muito complexas e os processos industriais relacionados ao seu uso, nas mãos de empresas sul-coreanas ou taiwanesas.

Curioso, o avançar da humanidade é sempre um avançar da sua capacidade de registro, das figuras nas cavernas ao papel, do papel aos meios digitais, e com o tempo a comunicação veloz e precisa desses meios digitais que hoje tudo registram, logo quanto mais registro mais necessidade de memória e logo mais chips nessa nova guerra, onde mundo anda velozmente atras da inovação e aqui nossos candidatos à presidência consomem o tempo dos eleitores na caça aos comunistas e as urnas digitais, que triste o momento.

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